10 mar, 2025 - 16:16 • Daniela Espírito Santo
A ideia de invasão de imigrantes no nosso país é um mito. Quem o defende é António Brito Guterres, assistente social e gestor comunitário, na conferência "Imigração: o desafio da proximidade" que decorreu esta segunda-feira, em Vila Nova de Gaia.
Para este assistente social, a ideia de "invasão" não passa de uma crise dos serviços públicos, que se prolonga há vários anos e também afeta os portugueses.
"A crise que se criou em Portugal é, na verdade, uma crise dos serviços", diz. "O ónus está nos imigrantes, mas foram os serviços que colapsaram. Já foram a um centro de saúde e viram como são tratados os migrantes, especialmente se não forem brancos?", questiona.
Shiv-Kumar Singh, da Associação Casa da Índia, concorda e assegura: "Todos os problemas dos portugueses, na habitação, segurança ou saúde, são problemas também dos migrantes"... com a agravante de não dominarem a língua, o que os coloca numa posição ainda mais vulnerável.
"Ter uma marcação num hospital hoje em dia é um valor precioso para toda a gente. Se uma mulher migrante vai ao centro de saúde e não fala português perde a marcação", lembra.
Já António Brito Guterres reforça que um imigrante mal tratado num espaço público vai ter de "voltar lá mais vezes porque não percebeu". "Um imigrante chega a um serviço e está lá escrito na porta: 'Não temos tradução'. Se eu for a um serviço e não perceber, vou ter de voltar lá, o que vai sobrecarregar o sistema. Se o serviço for ineficiente sai mais caro", exemplifica.
A barreira linguística não ajuda. Shiv-Kumar Singh admite que a comunidade sul asiática não tem, muitas vezes, domínio da língua portuguesa e é, por isso, "duplamenta castigada". "Há quem queira muito aprender português mas, mesmo pagando, não há vagas para aprender português. Há uma enorme fila de espera", lamenta.
"Eu mesmo já dou aulas a duas turmas online e conheço alunos que fazem 200 quilómetros para irem estudar a Lisboa", assegura.
Mesmo assim, recorda, para quem vem para Portugal à procura de uma vida melhor "a primeira preocupação não é a língua portuguesa". "A primeira preocupação é emprego, emprego, emprego".
"Muitos imigrantes pagaram 25 mil euros para conseguirem vir para cá", denuncia, acreditando que, tal como defendeu o ministro da Presidência, Leitão Amaro, "a manifestação de interesse foi usada como instrumento", pelo que a migração "tem de ser regularizada".
Mas a integração não se fica apenas pela língua, assegura Isabel Martins da Silva, da Meeru, organização não governamental dedicada ao diálogo inter-religioso. Para a representante, a integração "é um jogo que se faz todos os dias".
"Falarmos de integração é falarmos de políticas públicas, mas também do quotidiano a funcionar. É na vida real das nossas ruas e bairros que o verdadeiro jogo da integração se joga", admite.
A ONG que representa batalha em áreas como Viana do Castelo, São João da Madeira ou Braga, e acredita que o trabalho em rede é necessário para dar resposta na hora de integrar os migrantes no nosso país. Especialmente a nível local.
"Falar de respostas locais é falar de juntas, municípios, organizações da sociedade civil, da igreja e da necessidade de colaboração entre todas estas. Temos de trabalhar em rede", defende, deixando o alerta: a promoção da integração é um processo lento, "cujos frutos só daqui a uma ou duas gerações é que veremos", pelo que também é preciso "treinar a paciência uma visão de futuro mais alargada", para não "arriscarmos soluções fáceis".
"Custa-me muito que falemos de integração como se fosse algo matemático. A integração joga-se no profundo da identidade das pessoas. Quando falamos de mediação não falamos só de tradução. Falamos de confiança. De relações de confiança que demoram a ser criada", admite.
A língua, por si só, não chega. António Brito Guterres concorda e dá o exemplo das escolas, espaços privilegiados de integração mas onde "os alunos de países que falam língua portuguesa oficialmente são os alunos que mais rapidamente reprovam". "Um aluno cuja língua mãe não é o português consegue ter mais sucesso, o que é interessante", sublinha.
Para ajudar na integração existe a figura do mediador cultural, que Carlos Miguel, ex-secretário de Estado da Administração local, louva. "São fundamentais e há anos que se luta para criar o seu estatuto. São contratados como assistentes operacionais quando são técnicos especializados. Devia haver uma carreira... isso era fundamental", acredita.
António Brito Guterres também celebra os mediadores culturais, mas diz que, por vezes, eles são "atirados" para as escolas para "animar os recreios para que não haja problemas". A resposta, como em quase tudo, passa pela humanização.
"Olharmos para as pessoas de forma completa é a melhor integração que temos de ter... e não vejo isso", lamenta.
António Brito Guterres acredita que uma forma de ajudar a fazer essa integração pode passar, igualmente, por mais representatividade dos imigrantes nos serviços públicos, com as autarquias a precisarem de dar o exemplo.
"Quantos empregados imigrantes estão nos municípios? Não temos a cara da cidade nesses locais. Um aluno imigrante é provável que não conheça um único professor que não seja branco no seu percurso. O mesmo acontece na autarquia e no centro de saúde", explica, pedindo ao "setor público que sirva para dar esse exemplo".
"Algumas empresas são mais rápidas a adquirir esse gesto e, curiosamente, um estudo revelou que 39% das empresas que têm diversidade nos seus empregados têm maior retorno financeiro", explana.
Metendo "cada macaco no seu galho", Carlos Miguel, diz, por sua vez, que a integração de migrantes "é competência da administração central". "Ponto final parágrafo", declara.
Nos últimos tempos "foram transferidas inúmeras competências para as autarquias", pelo que muitas respostas à crise migratória passam, agora, pelos municípios, mas Carlos Miguel defende que, apesar de ser mais simples integrar um imigrante na sua comunidade "na prática", o apoio "não pode vir de uma gaveta", mas de uma "base forte". "Temos de caminhar para parcerias mais concretas entre a administração central, que tem a competência, e a administração local", que está no terreno.
Ou seja, a competência é central, mas a resposta está a ser local. "Os municípios têm feito muito e estão muito despertos para esta realidade", diz Carlos Miguel, apesar de acreditar que a função pública portuguesa tem o "vício horrível de esperar sempre que as pessoas vão ter com ela".
"Quando andamos em campanha eleitoral vamos porta a porta. Quando vamos implementar uma política não vamos porta a porta: esperamos que o migrante vá ao gabinete e há muitos que nem conhece o caminho para lá chegar", lamenta.
Para além disso, é preciso "adequar cada tipo de imigração à realidade" e não tratar todos os migrantes por igual: há quem venha para trabalhar em tecnologia, quem procure constituir família e viver cá muitos anos e quem só esteja no território durante dois ou três meses para participar em alguma campanha agrícola temporária.
O ex-secretário de Estado admite, por isso, que a integração dos migrantes devia passar para "o Ministério do Trabalho e Segurança Social".
Mas se a "invasão" é mitológica e a criminalidade até diminui nos locais com mais migração, como refere António Brito Guterres, o reverso da moeda acontece e há quem tenha medo justificado, diz Shiv-Kumar Singh, que admite que há imigrantes com medo de denunciar casos de violência junto das autoridades.
António Brito Guterres corrobora: "Há imigrantes que fazem queixas e, como estão em situação irregular, recebem notificação para serem expulsos. Imaginem um imigrante a ser explorado por uma rede de tráfico... Se não puder reportar às autoridades...".
A discriminação é uma realidade, assume Carlos Miguel, de "origem cigana" e "muito sensível a estas matérias", até porque a comunidade que o originou "está cá há 500 anos, mas a situação é a mesma". Lamenta agora, e sobretudo, a banalização dessa discriminação.
"Tenho 68 anos. Sempre vivi muito racismo encoberto. Chego à minha fase de velhice e passou a ser descoberto... Custa muito mais", desabafa.
"Ainda ontem tivemos um jogo de futebol que foi parado por causa de insultos racistas. Temos de olhar para nós próprios e perceber como podemos contribuir para que isso não se banalize", pede.
Também Shiv-Kumar Singh admite conviver diariamente com casos de discriminação, mas assegura que também há quem os critique abertamente. "Os portugueses são os primeiros a lutar contra essa discriminação e os migrantes estão gratos por essa postura que existe em boa parte da população", saúda.