15 mai, 2020 - 22:07 • Rosário Silva
Mais tempo para ver, para ouvir, para pensar. Mais tempo para cada um. Muitas perguntas, poucas respostas convictas, muitas dúvidas e poucas certezas quanto ao futuro. A crise pandémica que a todos confinou, despertou um novo olhar para e sobre as relações humanas, obrigando à descoberta de novas formas de ver, sentir e viver a vida. Descobriram-se sinais de espiritualidade, seja por via da solidariedade, seja por via da religião, independentemente de ser-se ou não crente.
E agora? Como vai ser o futuro? Se para alguns o “futuro a Deus pertence”, para outros, não há futuro sem um sentido para o presente. “O lugar da espiritualidade na construção do futuro”, foi o tema escolhido pela Fundação Eugénio de Almeida (FEA) de Évora, que lançou o repto para um debate online.
Entre os convidados, estiveram representantes das três religiões monoteístas – judaísmo, islão e cristianismo. Isaac Assor segue, com rigor, o judaísmo. Filho de um antigo rabino, é “hazan” (uma espécie de líder da liturgia) e oficiante dos serviços religiosos, em Lisboa, na Sinagoga Shaare Tikvá. Sheik David Munir é o principal líder da comunidade islâmica em Portugal, o imã da Mesquita Central de Lisboa. Vasco Pinto de Magalhães, é sacerdote jesuíta, com um percurso marcado pelo trabalho na Pastoral Universitária, pelo acompanhamento espiritual, sem esquecer a devoção às letras, ao ambiente e à bioética.
A Renascença acompanhou, via Facebook, a troca de perspetivas e testemunhos que, embora condicionadas pelos alicerces de cada uma destas religiões, não estão tão distantes, quando o essencial está centrado na dignidade da pessoa humana. Testemunhos que o convidamos a ler.
Vasco Pinto de Magalhães. “A espiritualidade é a capacidade de ir para além de nós próprios”
“Se tivesse que dar um título, diria que ‘não há futuro sem espiritualidade’. O que cada um entende por futuro? O que cada um entende por espiritualidade? Dois pontos sobre o futuro: o futuro não começa na ideia, nem na ideologia. O futuro parte da realidade. Como é que trabalhamos o barro que temos? Partimos da realidade para dar forma e formato, com vista ao mundo mais humano que todos desejamos.”
“Dando um exemplo, neste tempo que vivemos de confinamento, podíamos dizer que isto é um intervalo, que o programa segue dentro de momentos, mas isso seria exatamente o contrário daquilo que seria a atitude humana. Esta realidade não é um intervalo, tem de ter o seu valor e não pode ser posta de lado como quem espera saltar automaticamente para uma ideia de normalidade que também é completamente discutível.”
“Então, esta fase, deve ser tomada como algo importante, como uma ocasião a integrar e a espiritualidade tem essa função, integradora. Vamos pegar nesta realidade, que não desejaríamos, mas que faz parte da construção do futuro e, curiosamente, concluímos que tem havido alguns sinais de espiritualidade a atravessar, este momento, no meio do conflito. Por exemplo, o humor que isto despoletou, é um sinal de espiritualidade, a criatividade e, sobretudo, a solidariedade despoletada por esta situação, são sinais.”
“Assim sendo, a realidade é o ponto de partida e temos que a trabalhar, para que, de fato, tenhamos uma nova época, mais humana, diria eu. Há sinais de espiritualidade na construção desse futuro. A espiritualidade é um modo de estar presente, é a vivência dos acontecimentos que gera processos de relação e de crescimento, ou seja, é uma maneira de estar na vida, que integra, e faz com que se vá para além do evento e do momento.”
“Para mim, e queria dizê-lo, a espiritualidade não é mais uma dimensão do humano, por isso a espiritualidade no futuro não é um elemento, porque a espiritualidade, na minha maneira de ver, é um modo de viver todas as outras dimensões. Se somos biológicos, se somos afetivos, se somos sociais, somos psicológicos, somos culturais, e se toda essa riqueza é vivida para fora, virada para o dom, então em toda essa realidade está a espiritualidade. Há a tentação de pensar a espiritualidade como mais uma dimensão, mas não é mais uma, é um modo de viver, como um todo. Isto parece-me muito importante.”
“Também, às vezes, vemos a espiritualidade como o contrário de imaterialidade, mas a matéria não é o contrário do espírito. A matéria é aquilo que pode ser espiritualidade. O contrário do espírito é o egocentrismo, é a pessoa fechada no seu núcleo, e daí todo o individualismo, toda a autossuficiência, toda a violência, todo o esbanjamento e todo o luxo, que são, exatamente, tudo o que contraria a espiritualidade.”
“É claro que a espiritualidade tem a ver com a religiosidade, tem a ver com a cultura, tem a ver com tudo o que é a vida, mas é um modo de viver, que vai buscar o seu entendimento à própria palavra ‘espírito’ que significa sopro, significa respiração, é a vida que é dada e recebida. Então, a espiritualidade é a capacidade de nos transcendermos, ir para além de nós próprios em tudo o que pensamos e fazemos, a forma como agarramos a história. Se a agarramos pelo lado de a fazer crescer, em humanidade, então esse é o caminho.”
“O jejum, o deserto, este confinamento, não são maus, evidentemente. São maus se vivermos mal, tal como andámos a viver mal toda a situação que nos parecia boa e normal, mas não era normal, porque estava cheia de egoísmo, de busca de compensação, de luxo, de riqueza, de corrupção. O jejum a que fomos obrigados é saudável e ajuda-nos a perceber que é aí, nesse deserto, nessas travessias do deserto que a gente cresce, passando a ter lugar para o espírito de amor e justiça.”
“Creio que tudo isto é um alerta, mas é um mal que vem do erro humano. O futuro começa cada vez que deixamos que o espírito de amor, de justiça e de paz, presente em Deus, para nós cristãos de uma forma muito clara em Jesus Cristo, que diz exatamente que o seu exemplo foi esvaziar-se. Aí começa a criatividade e a arte, começa o bom humor, começa a confiança, começa o sentido.”
“O problema não está no virtual, pois o virtual é real, é a maneira que temos para chegar ao outro. Já foi a rádio, já foi o megafone, mas agora temos outras maneiras de chegar à pessoa. Não há realidades más, há possibilidades de usar bem, aquilo que é bom e aquilo que é criado. Esta é uma ocasião para descobrir que os vazios estão cheios: cheios de possibilidades, cheios de amor, cheios de nostalgia, cheios de capacidade de vir ao encontro. Olho pela minha janela e vejo uma praça enorme, vazia. Não! Cheia de possibilidades, cheia de vontade de criar e de ir para a frente.”
“Devemos saber viver em processo. O futuro é um processo e é nessa atitude que devemos estar. Não fala da realidade que temos e da realidade que somos, sem ser agradecido. Somos optimizadores, temos que estar em processo e só assim podemos construir o futuro. O futuro da semente é o fruto.”
Isaac Assor. “A vida a mil à hora, mas agora com mais espiritualidade”
“Vivemos momentos únicos e que nos levam a pensar na nossa interioridade, na nossa espiritualidade, e é a partir deste momento que temos de construir o futuro. Na verdade, para nós judeus, nada disto é novo. Recentemente, lemos na ‘Torah’ (livro sagrado do judaísmo) uma referência ao isolamento social, neste caso, doentes que tinham lepra. A doença era vista como consequência da maledicência e, por isso, surgia naquele que não sabia viver em sociedade. Ora, isto pode ser uma lição. Também nós, não estávamos a saber viver em sociedade. Atropelávamo-nos uns aos outros, devorávamo-nos uns aos outros, os ciúmes, a inveja, a indiferença à dor do outro. Não estávamos a viver corretamente e, agora, vivemos, claramente, um momento de introspeção e de muita espiritualidade.”
“Neste momento, qualquer uma das crenças tem um desafio: como comunicar, como conseguir chegar aos seus fiéis. Posso dizer que, nós, temos uma experiência impressionante. Nos “zooms” (aplicativo para videoconferência) que temos feito, seja sobre temas atuais, seja relacionado com o judaísmo, temos mais membros a participar do que nas sinagogas, o que nos leva a pensar que, se calhar, havia algo errado no que estávamos a fazer.”
“Muito se tem falado sobre o coronavírus, mas muito pior que a covid-19, só mesmo o vírus do medo, do individualismo e da indiferença. Então, a espiritualidade é fundamental para que possamos ter algo onde nos possamos agarrar.”
“Eu, sou uma pessoa que vivia a vida a mil à hora. Agora, a minha vida mantém-se a mil à hora, mas com mais espiritualidade, com muito mais estudo, neste caso sobre o judaísmo. Nós não refletimos, muitas vezes, sobre as questões sociais, sobre questões profissionais ou até mesmo pessoais, pois não temos tempo para introspeção sobre o que nos faz mover, sobre o que nos faz viver.”
“Há quem considere que a espiritualidade é professada apenas por quem tem uma crença, mas eu não vou por aí. Deus quando criou o homem, deu-lhe a capacidade de poder experienciar algo transcendental, e isso traduz-se na prática do amor fraterno, da paz, da compaixão, para conduzir o ser humano ao caminho da felicidade e da harmonia.”
“Neste momento, com os meios tecnológicos que dispomos, devemos dizer às pessoas que estamos com elas. Depois, devemos ter fé e não temer. A preocupação é real, sim, mas acreditamos que existe Alguém que decidirá o que acontece connosco e esse Alguém, é o “Diretor” dos céus e da terra. Passemos, então, algum tempo ponderando e verbalizando a nossa fé em Deus, orando, pedindo-lhe que nos proteja a nós, aos nossos entes queridos, e que traga a cura para todo o mundo. Devemos ter confiança.”
“Por outro lado, uma das bases do judaísmo, mas que se aplica a todas as religiões, é fazer caridade. Isaías, o grande profeta da paz, comparou o fazer caridade, com o vestir uma armadura. Cada contribuição que nós fazemos, por pouca que seja, fornece um escudo de proteção contra qualquer aflição. No Livro dos Provérbios, é-nos dito que a caridade salva da morte. Sejamos nós, uma espécie de antivírus, contagiando o mundo com bondade, fé, esperança e compaixão.”
Sheik David Munir. “Sou o muçulmano mais feliz, mas também o mais triste de Portugal”
“Este é um tema é muito vasto e desafiante. Antes da covid-19, tínhamos tudo, mas também não tínhamos nada. Neste momento, não temos nada e temos tudo. A nossa velocidade era a ‘mil à hora’ como dizia o Isaac Assor. Nós saímos das nossas casas, íamos para o emprego a correr, deixar os filhos na escola a correr, o transito era caótico, isto só para falar da realidade portuguesa.”
“À luz das religiões, o ser humano é a melhor criatura que Deus criou, pela sua inteligência, pela sua espiritualidade, pela sua humanidade, no entanto não o valorizávamos. E o não valorizar, fez com que o Ser Supremo, e não estou a dizer que seja uma punição, fizesse algo para que nós pudéssemos valorizar convenientemente.”
“Será que, a partir de agora nos vamos tornar mais humanos ou o lado material vai continuar a sobrepor-se a tudo? Não sei responder. Sei apenas que, estamos a sentir uma dificuldade enorme no ser humano, pode até ser a espiritualidade, mas o mais visível, neste momento, é a falta de bens essenciais, fazendo com que vão bater à porta das instituições sociais e religiosas. Pergunto, então, e deixo para reflexão, até que ponto, cada um de nós está disponível para partilhar o que tem, numa altura de mais dificuldade, com o seu próximo?”
“Neste momento, eu sou o muçulmano mais feliz de Portugal, mas também sou o muçulmano mais triste de Portugal. Vivo na mesquita, faço as orações sozinho, faço o chamamento para a oração sozinho, mas ao mesmo tempo acompanhado, por exemplo, através do Facebook. Sei que as pessoas estão a acompanhar-me, mas eu estou sozinho. Curiosamente, não vejo a mesquita vazia, as pessoas é que veem a mesquita vazia. Eu estou de costas, estou virado para Meca e escolhi fazê-lo propositadamente, pois quero que elas valorizem mais aquilo que têm.”
“Há uma pequena história que me foi contada por um irmão cristão, espero que não levem a mal, é um diálogo entre Deus e o diabo. Este, diz que Deus deixou de ser, o Ser Supremo. ‘Mas como?’, pergunta, Deus, ao que o diabo responde: ‘Eu inventei a covid-19, tirei as pessoas das mesquitas, das igrejas, das sinagogas, dos templos, tirei-as do teu lugar sagrado.’ Então, Deus responde: ‘Sim, tiraste, mas sabes que nesta batalha, eu é que venci. É que as pessoas, agora, oram em casa, coisa que não faziam há muito tempo.’”
“Conclusão: a oração começa em casa. Isto é o futuro. Compreendo quando as pessoas dizem que querem regressar à mesquita, que têm saudades. Claro que sim, é perfeitamente legitimo, valorizo, mas também tenho que dizer que, neste momento, o melhor é continuar a fazer as suas orações em casa, aproveitando para evoluirmos, valorizando mais ainda aqueles que estão connosco todos os dias. Nós estávamos com os nossos todos os dias, mas não o valorizávamos.”
No debate online, “O lugar da espiritualidade na construção do futuro”, moderado por José Alberto Ferreira, diretor artístico do Centro de Arte e Cultura da Fundação Eugénio de Almeida, participaram, também, José Manuel Martins, diretor do Departamento de Filosofia da Universidade de Évora e Elisa Santos, antropóloga e consultora em projetos de desenvolvimento.