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Entrevista Renascença/Ecclesia

Há mães que abdicam da licença de maternidade “com medo de irem para a rua”

07 mai, 2023 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

A presidente da Associação de Defesa e Apoio à Vida de Aveiro (ADAV) diz que continua a “acontecer com frequência” casos de mães que renunciam à licença de maternidade com receio de serem afastadas do trabalho.

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Foto: Lusa
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ADAV-Aveiro Foto: DR
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Teresa Correia e outras voluntárias da ADAV-Aveiro Foto: DR
Teresa Correia e outras voluntárias da ADAV-Aveiro Foto: DR

A presidente da Associação de Defesa e Apoio à Vida de Aveiro (ADAV), Teresa Correia, alerta para o facto de haver mães que abdicam da licença de maternidade "com medo de irem para a rua”.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, neste dia da Mãe, a responsável garante que esta é uma situação que continua a “acontecer com frequência” e defende que importa "denunciar estes casos”.

A presidente da ADAV, organização que se dedica a apoiar jovens mães, defende uma “mudança de mentalidade” porque “quando as pessoas estão grávidas, a maior parte das empresas não contrata porque daí a algum tempo a pessoa vai precisar de sair”.

Teresa Correia afirma ainda que “muitas vezes, as pessoas são empurradas para viver de subsídios por causa da forma de pensar de muitos empregadores”.

Noutro plano, a responsável da ADAV reclama melhorias nas políticas de natalidade e assinala que continuam a faltar creches em Portugal porque as vagas criadas até ao momento “são insuficientes”.

Desde a sua fundação, a ADAV já apoiou mais de 800 mães e Teresa Correia revela que “há cada vez mais dificuldades” e um aumento dos pedidos, especialmente "da imigração”.

A aumentar está também o número de mães que vão para o hospital sem o enxoval mínimo para o bebé. “Temos tido muitas, cada vez mais aumenta o número de mães nestas circunstâncias, que não têm o enxoval, não têm todas as roupas e o ovo, também, que é preciso levar para o hospital”, reforça.

"Nem sempre os empregadores são sensíveis a toda a situação de acompanhar um bebé"

É consensual que, nos primeiros anos de vida, se joga o futuro. A ADAV apoiou mais de 700 mães e famílias, ao longo das últimas duas décadas. Que trabalho tem sido feito junto destas pessoas?

De facto, mais de 700. Já estamos em mais de 800, atualizando aqui um pouco os dados. O trabalho tem sido feito junto de mães grávidas, de outras mães que já tinham tido os seus bebés e nos procuram, por situações diversas de dificuldades familiares.

Olhando, até, para essa atualização dos dados que nos avança, sente que esse tipo de dificuldades se agravou nos últimos tempos?

Há sempre dificuldades, não é? Talvez se tenham agravado um pouco nestes últimos tempos, tendo em conta a crise que estamos a passar e que começou um pouco antes da pandemia. Essa crise também tem consequências a nível, por exemplo, de habitação, do emprego e, portanto, há cada vez mais dificuldades e nós tentamos responder.

De que regiões são as mães e crianças que apoiam? Há um maior número de imigrantes a bater à vossa porta, também?

Sim. A nossa instituição foi criada no ano 2000, para o distrito de Aveiro. Apoiamos mães de várias localidades de Aveiro e o concelho de Aveiro é aquele que tem maior número de apoios e de pedidos, tendo em conta também a proximidade, não é? Mas temos pessoas também dos concelhos limítrofes: Ílhavo, Estarreja Ovar, Oliveira do Bairro, Vagos, Albergaria e Águeda. Quanto à proveniência das mães, de há uns anos para cá, temos tido muitos pedidos a nível da imigração.

De alguns países em particular?

Sim, tem variado, mas, no ano passado, 26% do apoio que nós prestamos foi a famílias de origem brasileira, seguindo-se famílias de origem angolana, são-tomense e venezuelana. Depois, também a Guiné, portanto, várias pessoas provenientes dos países de língua portuguesa. Este ano temos mais famílias provenientes da Ucrânia e, claro, portuguesas.

"As pessoas são generosas (...) Temos uma rede muito grande de amigos e benfeitores"

Essa experiência de fragilidade deve ser particularmente complicada para uma mãe que se encontra longe de casa…

É verdade. Algumas destas famílias, mesmo algumas portuguesas, não têm retaguarda nenhuma. Nós tentamos orientar e ajudar naquilo que é a especificidade da ADAV-Aveiro. Muitas vezes orientamos, por exemplo, para consultas no centro de saúde ou no hospital. Temos tido a colaboração muito importante de juntas de freguesia, de centros sociais, que nos ajudam e nos dizem a melhor forma de orientar essas mães que nos procuram.

Disse, noutra entrevista, que já se deparou com casos de mães que vão para o hospital e não têm nada. Como é que se vivem essas situações?

É verdade, é muito complicado. Temos dois tipos de situações: uma, em que o próprio hospital nos contacta e nos pede apoio, porque chegou uma grávida mesmo no final de tempo e, no hospital, os Serviços Sociais verificam que a mãe não tem o enxoval mínimo para o bebé.

Também temos a situação de outras mães que nos procuram, ou por e-mail ou por redes sociais, também através dos Centros Sociais, que nos pedem essa ajuda. Temos tido muitas, cada vez mais aumenta o número de mães nestas circunstâncias, que não têm o enxoval: as roupas e também o ovo.

O ovo é aquele habitáculo, uma cadeirinha especial, onde o bebé está durante o primeiro ano de vida, normalmente. Depende também da evolução da criança. Alguns bebés são muito grandes, mas, normalmente, o ovo dura até aos 12 meses. Uma das nossas regras é que as crianças não podem sair do hospital sem os pais terem um ovo, para proteção.

Tudo isso é-nos doado, aceitamos esse tipo de bens de puericultura e, depois, emprestamos, ao hospital diretamente, que o vem buscar. Aconteceu, por exemplo, no primeiro ano em que estivemos confinados e era impossível dirigimo-nos aos hospitais, foi mesmo alguém do Hospital de Aveiro, o motorista, que foi buscar o ovo e o enxoval necessário para esse bebé.

"Há muito a ideia de que as pessoas não querem trabalhar, que preferem viver de subsídios"

Como é que a associação tem conseguido manter a ajuda a estas mães? Os apoios e patrocínios têm diminuído por causa da crise?

Não. As pessoas são generosas e, se calhar, num momento de crise, as pessoas - apesar de também estarem a sofrer com a recessão e situações difíceis da sua vida - acabam por colaborar. Como é que nós sobrevivemos e como é que ajudamos? Não compramos estes bens, como lhe disse, porque o ovo e tudo isso acaba por ser dispendioso. Temos uma rede muito grande de amigos e benfeitores que, quando não precisam desses carrinhos, ovos, banheiras, outras coisas, nos dão. Funcionamos por empréstimo: a partir do momento em que precisam, fazemos um documento de empréstimo e as pessoas responsabilizam-se. Depois, a partir do momento em que não lhes serve, trazem para devolver ou, às vezes, para trocar por um carrinho maior...

Já nos aconteceu emprestarmos todo esse material necessário a uma grávida e, no dia seguinte, ela voltar para entregar muitos bens, porque algum familiar lhos tinha dado.

A ADAV assume-se como uma organização que defende a vida, seja em que circunstância for, sem posições política, partidárias nem religiosas. Essa ajuda é fundamental para quem se prepara para a maternidade e encontra apoio para prosseguir o seu projeto, superando situações de risco e exclusão?

Sim, sem dúvida. Nós não olhamos a credos religiosos nem posições políticas ou partidárias, não é isso que nos interessa. O que nos interessa é a vida, o dom da vida. Sabemos perfeitamente que, se não houver condições, físicas, monetárias e psicológicas, a situação de risco aumenta. Daí, nós querermos e podermos, graças a tantos contributos, apoiar. Temos tido, por exemplo, casos também que nos chegam da CPCJ, que são casos orientados, com quem nós colaboramos e temos tido muitos casos de sucesso.

Penso que isso é muito importante também ser dito. Temos muitas mães que, a partir do momento em que conseguem, por exemplo, um emprego, mesmo que sejam poucas horas, conseguem estabilizar a sua vida em termos económicos. Dizem-nos: “Obrigada, neste momento já consigo organizar-me. O apoio que me foi prestado foi importantíssimo, num determinado momento da minha vida, mas nesta altura vou prescindir desse apoio”. Para nós, isso é um é um sucesso.

Que relações é que se criam ao longo desta década este trabalho com as mães e as famílias que ajuda? Porque também imagino que se torna uma figura de referência para elas...

Eu, muitas vezes, estou na retaguarda. Temos grupos de voluntárias que, mensalmente, apoiam e recebem as mães. Eu também faço esse trabalho, mas o que interessa mesmo é apoiar e ajudar as mães. Penso que nós somos uma referência para muitas mães e isto talvez o consigamos perceber em duas vertentes. Uma é que, quando essas mães têm alguém conhecido e que precisa de ajuda, encaminham-nos para nós. Portanto, é porque consideram que o apoio que lhes prestamos foi essencial. Outro é que temos também várias mães que passaram pelas nossas instalações, que connosco estabeleceram uma certa relação de amizade e que, pontualmente, nos visitam ou até, por exemplo, quando há uma campanha ou a caminhada solidária, como aconteceu, acorrem a essas ações e colaboram, o que é bonito, não é? Já precisaram do nosso apoio; agora já não precisam e colaboraram connosco.

"As pessoas são empurradas para viver de subsídios por causa da forma de pensar de muitos empregadores"

Olhando para a realidade nacional, na última semana ficamos a saber, entre outras medidas, que os pais vão passar a ter direito a mais três meses de licença de trabalho em part-time, com o apoio da Segurança Social. É uma medida importante para quem acaba de ter um filho?

Sem dúvida, é importantíssimo. E falamos também do pai, da figura masculina, não é? De facto, nós temos tido essa presença, o que é muito bom. Temos várias famílias monoparentais, mas também temos famílias constituídas por pai e mãe. E é muito importante que os pais tenham a possibilidade de assumir essa responsabilidade de estar com os seus filhos e com as mães das crianças para poderem, não só participar na beleza que é a vida, mas também darem todo o apoio necessário nesta fase.

Apesar da legislação que há, sabe-se que há mulheres que negoceiam licenças de maternidade, não gozam a licença com medo de perder o emprego. O que é que o que é que é necessário fazer para alterar mentalidades e, sobretudo, assegurar os direitos que já existem neste campo?

Se calhar, as mentalidades demoram algum tempo a mudar... Eu sou professora e, portanto, sei que se começa cedo. Quanto mais cedo na idade nós começamos a falar sobre este assunto às crianças e aos jovens, melhor. Eu digo muitas vezes aos meus alunos: "Quando vocês forem adultos e tiverem responsabilidades de negócios, se forem empregadores, não deixem de contratar uma senhora porque ela está grávida. Ou não a despeçam porque ela está grávida."

Infelizmente, isso acontece muito. Temos essa situação em muitas mães. Há muito a ideia de que as pessoas não querem trabalhar, que as pessoas preferem viver de subsídios. Nós temos esse tipo de situação também na associação, mas não será a maior parte. A maior parte das pessoas e das mães que nós acompanhamos, e pais, são pessoas que querem um emprego, querem trabalhar. No entanto, apesar da legislação, como disse, nem sempre os empregadores são sensíveis a toda a situação de acompanhar um bebé. Portanto, penso que é muito importante que se fale sobre o assunto que se denunciem os problemas.

Como me perguntou: há muitas mães que acabam por não querer gozar a licença total de maternidade, ou mesmo pais, com medo de irem para a rua - desculpe a expressão - e, realmente, isto é, para mim, incrível. Para mim e para todas as pessoas que lidam nesta área social e que se apercebem de que isso acontece com frequência. Temos que denunciar os casos.Muitas vezes, dizemos às senhoras: "Olhe, mas isso não pode ser, a senhora tem direito a acompanhar o seu filho, por exemplo a tratamentos". E respondem: "Ah, mas é que se eu for, vão pôr outra pessoa no meu lugar."

Quando as pessoas estão grávidas, a maior parte das empresas não contrata porque sabe que daí a algum tempo a pessoa vai precisar de sair. Vai ter oportunidade de gozar a licença de maternidade e as pessoas muitas vezes são empurradas para viver de subsídios por causa da nossa forma de pensar. A forma de pensar de muitos empregadores. Claro que não são todos assim...

"Ou fazemos e somos úteis à sociedade ou, então, não somos importantes"

Queria colocar outra questão, relacionada com isto, sem fazer juízos de valor sobre ninguém. Muitas vezes, o problema está do lado do empregador, mas também está do lado de quem trabalha e de quem tem uma carreira e até de figuras públicas, que passam a ideia de que as pessoas, quanto mais depressa regressarem ao trabalho depois do parto, melhor. E isto vai ao encontro da pergunta que eu lhe fazia sobre a questão de mudar mentalidades. Tendo em consideração o quão difícil é chegar a este direito da licença de maternidade e de paternidade; não seria preciso que quem pode dar o exemplo também o faça e defenda intransigentemente este direito a estar em casa junto do seu filho depois do seu nascimento?

Eu penso que já está implícita a resposta, não é? Eu penso que sim. Nós vivemos numa sociedade em que ou fazemos e somos úteis à sociedade ou, então, não somos importantes.

E não é isso que se passa ou não deveria ser assim. Nós temos outros países em que essa legislação existe até bastante mais benéfica e é cumprida.

Mas além da questão da mentalidade, e se a legislação existe e não é cumprida, também não falta por parte de quem inspeciona uma maior vigilância?

Falta, claro que sim, mas também já tem muito a ver com a legislação e com a forma dela ser cumprida, não é? Eu preferia não ir por esse lado porque também não estou muito a par do que do que se passa em termos de vigilância.

Existe a Inspeção do Trabalho...

Pois, eu sei, mas não sei como é que ela funciona e, portanto, preferia não me alongar.

Portugal vive um problema de natalidade. Significa que as medidas adotadas não têm sido eficazes? Da sua experiência, que apostas deviam ser feitas?

As mães têm filhos cada vez mais tarde na sua idade, não é? Não quer dizer que não queiram ter filhos. Esta é uma realidade que não é só em Portugal, isto é uma situação europeia, pelo menos. Penso que se a legislação que está em vigor fosse cumprida, se houvesse maior facilidade, por exemplo, em termos de creches...

"No ano passado, 26% do apoio que nós prestamos foi a famílias de origem brasileira"

O Governo avançou com as creches gratuitas…

A creche gratuita ou mesmo lugares de creche...

Não há lugares suficientes?

Não, não há lugares suficientes, apesar de ter sido anunciado que eles iriam ser criados. Eu sei que há alguns sítios em que houve já a criação de mais vagas, mas são precisas muito mais. E havendo lugar para que os bebés estejam e que convivam também é importante. Por exemplo, estamos agora a acompanhar algumas mães que tiveram bebê há pouco tempo e que têm crianças de três-quatro anos e para as quais ainda não conseguiram ou creche ou mesmo pré-escola. Era muito importante que houvesse esses lugares porque era também uma forma de criar mais emprego, abrindo mais lugares nas creches e as próprias famílias teriam onde deixar as crianças, que aí sim também se desenvolvem, como sabemos, não é. A creche, infantário e a pré-escola são importantíssimos para o desenvolvimento social e pessoal de cada criança e, portanto, voltando à sua pergunta, o que é que é preciso fazer?

Não vale a pena dizer que há e depois não concretizar. Eu penso que é importantíssimo concretizarmos, arranjarmos mais políticas de habitação que sejam efetivamente possíveis de chegar às pessoas. As creches, sem dúvida, são necessárias e, depois, também falou da fiscalização e eu também penso que deverá haver alguma fiscalização no âmbito dos subsídios que são atribuídos. As pessoas têm subsídios até certo ponto e depois era importantíssimo que fossem trabalhar. Portanto, aqui é toda uma conjugação. Eu sei que isto é muito complicado a nível político, mas as mães querem trabalhar, muitas mulheres querem ter filhos, mas precisam realmente que haja alguma sustentabilidade a nível politico, a nível económico, e também nível pessoal.

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