Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Nova tradução da Bíblia não é “literalista” e inclui propostas de leitores

07 jul, 2024 - 21:56 • Ângela Roque

Foi lançada este mês a segunda versão do Evangelho de Marcos, com alterações em relação ao primeiro texto publicado em 2019. A Renascença conversou com o coordenador da comissão de tradução da Bíblia sobre o processo que tem decorrido de forma “sinodal”, envolvendo cerca de 40 especialistas e também os leitores, e que deverá estar concluído em meados do próximo ano.

A+ / A-
Entrevista ao padre Mário Sousa sobre a Bíblia da CEP
Ouça a entrevista ao padre Mário Sousa

Há novidades no projeto de tradução portuguesa da Bíblia, que deve estar pronta em meados do próximo ano. Para já, este mês de julho, foi lançada uma segunda versão do Evangelho de S. Marcos. A primeira tinha saído em 2019. Num processo inédito, o texto foi disponibilizado aos leitores para que pudessem contribuir com sugestões, e muitas foram mesmo incluídas na atual versão.

As traduções deste Evangelho, e dos outros textos bíblicos, estão disponíveis para download no site da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP).

O processo tem sido moroso, porque envolve dezenas de especialistas, biblistas e linguistas, que na nova versão amenizaram "literalismos duros" e introduziram algumas das propostas de alteração que receberam, com o objetivo de chegar a um texto que, sendo fiel ao original grego, fique num português que todos entendam. Foi o que explicou à Renascença o padre Mário Sousa, responsável pela comissão coordenadora da tradução da Bíblia, numa entrevista em que sublinha o “caráter sinodal” deste trabalho.

Foi lançada este mês de Julho uma segunda versão do Evangelho de S. Marcos. É um texto revisto. O que é que mudou em relação ao trabalho que já tinha sido feito há cinco anos?

Mudou alguma coisa, no sentido de se cumprir aquilo que desde o início foi combinado com os leitores, que era de pôr aquele texto primeiro à consideração, para que os leitores se pudessem pronunciar. Naturalmente que não é no sentido de se poderem pronunciar sobre a melhor tradução do grego ou do hebraico - neste caso do grego -, mas sobre a compreensão do texto, determinada expressão ou palavra, e de proporem sinónimos ou outras formas de maior compreensibilidade, para que o texto fosse, de facto, mais entendível. E assim aconteceu. Ao longo do tempo, os Evangelhos foram publicados em suporte físico, assim como os Salmos, mas também online têm sido publicados todos os outros livros, quer do Antigo quer do Novo Testamento, para que as pessoas possam ter acesso e olhar para estas traduções com este critério.

A participação dos leitores tem sido importante, nesse sentido?

Sim. Há aportações (contributos) que são muito oportunas e que foram integradas, outras são muito genéricas e outras que não terão tanta oportunidade como aquelas primeiras que referi. Mas, tudo foi analisado e tido em conta, e nesta nova edição tudo isso acabou por se espelhar.

Para além disto, considerámos que aquela primeira edição estava muito literalista. Naturalmente que a orientação da Santa Sé, e também quando um académico se propõe fazer uma tradução, tem de respeitar ao máximo o original e procurar ser o mais fiel possível ao original, e isso seria ser literal.

Outra coisa é quando esta preocupação é de tal maneira vincada que se traduz com expressões que são muito literais, e que em português, porventura, não funcionam tão bem. Com mais esta característica, que é a de que este texto, para além de todos os âmbitos da vida da Igreja em Portugal, destina-se de uma forma particular à proclamação, ou seja, a ser usado na Liturgia. Se o texto nesta proclamação não é entendível, isto é muito complicado, porque aquela palavra e aquela tradução tem de ser um veículo para que Deus consiga falar ao seu povo. Se a tradução acaba por ser um ruído para que isso aconteça, não se está a ser fiel à finalidade primeira deste trabalho, que já tem envolvido muitos anos e muitas pessoas, e que também é entusiasmante.

Quantos especialistas é que este processo tem envolvido? E, como responsável desta comissão coordenadora da tradução da Bíblia, que balanço faz deste processo que já tem uns anos?

No início, procurou-se envolver o maior número de pessoas. Foram envolvidos quatro dezenas de biblistas, quer portugueses, quer dos países de língua oficial portuguesa. Isto é uma mais-valia, porque é uma riqueza, mas cria um problema que é a harmonização das traduções. Tradutores diferentes, ainda por cima com formas diferentes de expressar o português, criam necessariamente traduções que não são completamente harmonizadas, ou harmonizantes. Isso obrigou a comissão coordenadora - e agora falo enquanto responsável do Novo Testamento - a um trabalho suplementar de harmonização.

Dou-lhe um exemplo muito concreto: São Paulo quando escreve utiliza um determinado vocabulário que lhe é próprio. Esse vocabulário convém ser sempre traduzido da mesma forma, para se perceber que a ideia que está a ser transmitida é a mesma na Carta aos Coríntios, na Segunda Carta aos Coríntios, ou na Carta aos Romanos. Tendo cada uma das cartas tradutores diferentes, é natural que estes termos nem sempre sejam traduzidos da mesma forma.

E como é que se resolveu isso?

Com muito trabalho de harmonização, que foi aquilo que tornou moroso todo este processo. Isto é uma preocupação no caso dos evangelhos sinóticos, de Mateus, Marcos e Lucas, que muitas vezes têm conjuntos de texto completamente iguais. Ora, traduzidos por pessoas diferentes, isso não aparece na tradução, e foi preciso harmonizar também os três evangelhos sinóticos.

O processo, que é enriquecedor porque envolve muitos tradutores, depois criou uma dificuldade, ou pelo menos tornou mais moroso o trabalho, com esta necessidade que havia de harmonizar aquilo que tinha mesmo de estar harmonizado.

Que passos é que se seguem agora? Quando é que teremos a tradução completa da Bíblia?

Esperamos que no princípio, ou meados do próximo ano, a tradução esteja completa. Mas, o Novo Testamento está praticamente terminado. E digo isso porque estamos com o mesmo critério de ter um português mais compreensível, porque quando estamos, por exemplo, a falar de São Paulo, Paulo escreve muitas vezes por impulso, no sentido em que aquilo que está a sentir é aquilo que vai saindo na sua pena ou na pena do seu Secretário, vai ditando. Isto torna, de facto, um grego, muitas vezes complicado para traduzir num português que seja compreensível, para além de que o pensamento de Paulo é muito denso. Mas, depois ele faz muitos incisos, na sua forma de escrever cria muitos apartes, faz muitas derivações. É preciso produzir um texto que, nunca sendo fácil - porque Paulo nunca será fácil e é preciso lê-lo mastigando o seu pensamento, as suas palavras -, mas pelo menos que o português não o torne incompreensível, que são duas coisas, de facto, diferentes.

Neste momento estamos a aplicar a mesma coisa que fizemos aos evangelhos, a todos os outros livros do Novo testamento, e isso praticamente está no fim.

Esta nova tradução da Bíblia é um projeto que a Conferência Episcopal Portuguesa tem acarinhado de forma especial.

Sim. É um projeto promovido pela Conferência Episcopal. A Bíblia inclusivamente tem este título, oficioso, se não oficial, de Bíblia da Conferência Episcopal, porque a indicação da Santa Sé é que cada igreja particular - portuguesa, francesa, italiana - tenha a sua tradução 'oficial', e digo entre aspas. Ou seja, aquela tradução à qual se recorre sempre para todos os âmbitos da vida eclesial, de maneira a que o texto que se ouve na Eucaristia seja o texto que temos na Liturgia das Horas e o texto que, por exemplo, é utilizado na catequese da infância ou de adultos, para que haja esta unidade de tradução. E essa é a finalidade.

Os textos têm vindo a ser disponibilizados online ao longo dos últimos três anos. No final haverá uma edição impressa de novo desta Bíblia traduzida?

Sim. Como todos estes textos têm este caráter sinodal - ou seja, os tradutores colocam à apreciação do leitor a resultado da sua tradução, para que possa também ser enriquecida de acordo com estes princípios que há pouco referi -, não tem sentido publicar este texto, porque ainda vai ser trabalhado. No final, quando todo este processo tiver sido percorrido, então sim, a CEP promoverá a edição de uma Bíblia, a partir da qual todos os outros âmbitos da vida eclesial, para além da liturgia, vão buscar a Palavra de Deus.

Esta tradução é feita por biblistas e também tem a colaboração de linguistas. Porque, para além do aspeto linguístico em si, puro e duro, é preciso ter em consideração - e digo isto em relação ao Novo Testamento - que embora o texto esteja escrito em grego, a mentalidade que está por detrás das palavras não é helénica. É a mentalidade semita, a mentalidade bíblica do Homem que foi formado com a teologia do Antigo Testamento. Por exemplo, quando Paulo fala do corpo, da alma, do espírito, não está a falar em compostos do ser humano, como falariam os gregos. Embora utilize as palavras gregas, o substrato do seu pensamento radica na antropologia bíblica, que vê o homem como um todo. Então, ele usa essas palavras não no sentido grego, mas muito mais no sentido de sublinhar dimensões do ser humano. Todas estas nuances, que são muito importantes depois para a teologia, são tidas em conta. Ou seja, não só o texto, mas o mundo do texto e o mundo que está por trás do texto.

E aí os biblistas, os especialistas, são fundamentais?

Exatamente. É um trabalho que é importante ser feito em conjunto, entre os biblistas e os linguistas, embora naturalmente todos os biblistas acabem por ter uma forte formação linguística também. É muito importante que a sinodalidade que se pretendeu neste trabalho esteja presente neste diálogo entre os biblistas e os linguistas.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

Destaques V+