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ENTREVISTA PADRE TONY NEVES

"Moçambique corre o risco de ficar à deriva, como o Haiti”

04 jan, 2025 - 08:22 • Ângela Roque

O padre Tony Neves estava nos arredores de Maputo quando estalou o caos, a 23 de dezembro. “Foi terrível”, conta à Renascença, não escondendo a preocupação com o futuro próximo daquele país. Nesta entrevista lamenta que a comunidade internacional esteja a prestar pouca atenção a África, onde alastram conflitos potenciados por “grandes lobbies”, como o das armas.

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De visita a Moçambique em dezembro, no âmbito das responsabilidades que tem no governo geral dos Missionários Espiritanos, o padre Tony Neves vivenciou a onda de violência que alastrou no país para contestar os resultados das eleições, que a oposição considera terem sido fraudulentas.

Em entrevista à Renascença, diz que se deparou com um país “empobrecido e abandonado”, que “pode vir a ficar à deriva”. Quer acreditar que as partes em confronto terão o “bom senso” de tentar evitar uma guerra, mas alerta para os interesses que estão por trás deste e de outros conflitos no mundo.

Já em Angola, onde vai ficar um mês, diz que se deparou com uma “Igreja viva” e alegre, com muitas “novas vocações sacerdotais e religiosas”.

No Natal estava em Moçambique e assistiu ao caos que se instalou. Como olha para o futuro do país? O que mais o preocupa?

Sim, passei o Natal na Matola, nas periferias de Maputo, mas cheguei a Moçambique dia 10 de dezembro, e pude visitar as comunidades espiritanas que estão na Beira, em Chimoio, em Nampula e em Nakala. E antes de descer ao seminário de Santo Agostinho na Matola, ainda passei quase 15 dias.

O princípio do caos teve lugar antes de eu chegar, pois toda a oposição contestou os resultados provisórios das eleições. Houve, nessa altura, manifestações em quase todo o país, o que espantou meio mundo, sobretudo porque a Frelimo governou com mão de ferro e de forma absoluta durante quase 50 anos, sem dar lugar a qualquer tipo de contestação mais ousada. Estas manifestações mostraram um povo desesperado, sem nada a perder e, por isso, também sem medo de enfrentar polícias e militares. Assim, eu percorri o país já agitado, mas ainda relativamente calmo.

O dia 23 de dezembro, data em que o Conselho Constitucional confirmou a vitória absoluta da Frelimo em todas as frentes, isso sim, abriu as portas a um caos total que eu pude viver, estava já na Matola, ali nas periferias de Maputo.

Foi terrível: muitos tiroteios, incêndios, destruições, mortes, pilhagem generalizada. O governo desapareceu. A polícia e os militares também sumiram, e entregaram, assim, o país a um povo na rua, a um povo descontrolado, comandado por grupos que pareciam funcionar à moda de gangues. Não houve quase celebrações de Natal.

Moçambique. "As manifestações mostraram um povo desesperado, sem nada a perder e, por isso, também sem medo de enfrentar polícias e militares"

Por tudo isto, eu olho para o futuro com muita preocupação, mas sobretudo com dor. Eu vi um país muito empobrecido e abandonado, sobretudo nas periferias das cidades e no interior rural… As destruições e pilhagens vão comprometer o futuro próximo das populações. O caos instalado e a ausência total de autoridades podem fazer de Moçambique um país à deriva, como está agora, por exemplo, o Haiti. Mas, quero crer que todas as partes envolvidas terão o bom senso de se sentar e resolver este grave problema que foi criado por eleições que toda a oposição considera fraudulentas.

"Muitos conflitos em África estão a ser potenciados pelos grandes lobbies da economia e dos armamentos, e as grandes potências estão aí enterradas até ao pescoço"

Tem estado ligado à área da justiça e paz, áreas em que África continua deficitária. A comunidade internacional está demasiado distraída com o continente africano, onde alastram vários confrontos e violência. Que futuro antevê?

Não é só África que tem déficits enormes de justiça e paz. É o mundo inteiro! E basta olhar para o mapa dos grandes focos de violência hoje para verificarmos que há problemas graves à escala do planeta. E mais: muitos destes conflitos em África estão a ser potenciados e até estimulados pelos grandes lobbies da economia e dos armamentos, e as grandes potências estão aí enterradas até ao pescoço. Deviam elas também responder por dramas indescritíveis de que muitas populações estão hoje a ser vítimas.

Mas falando agora a partir da África, onde estou, claro que há um longo caminho a percorrer até que a maioria da população veja respeitados os seus direitos humanos mais elementares.

A comunidade internacional tem de intervir, e acho que o devia fazer de duas formas - ajudando a criar contextos de justiça e paz e, por outro lado, evitando que os lobbies da morte, assim chamo eu, continuem a engordar à custa dos mais frágeis. Nesse sentido, eu interpreto as sábias palavras do Papa Francisco, que estão na mensagem para o Dia Mundial da Paz, pois, num contexto de Jubileu, o Papa pede três coisas: o perdão da dívida aos países mais pobres por parte dos países mais ricos; a abolição da pena de morte; e a diminuição dos orçamentos militares para se criar um fundo de combate à fome no mundo.

Eu acho que se se tomarem a sério estas palavras do Papa Francisco, o mundo terá futuro, a África será o continente verde, o continente da esperança. E quero crer que este será o caminho.

Está agora em Angola, para estar sobretudo com os espiritanos. O que vai fazer? E como encontrou este país, que pessoalmente lhe diz tanto?

Como Angola é a minha segunda casa, eu nunca sou isento quando falo desta terra e deste povo. E também, como saí do caos moçambicano, Angola apresentou-se como o país da calma e da paz.

Eu vim como membro do Conselho Geral dos Espiritanos fazer aquilo a que se chama a ‘visita canónica’ a todas as comunidades que a congregação tem em Angola. Estamos no norte, no centro, no sul, no interior e no litoral. Este é um tempo fantástico para encontrar todos os meus confrades e a família espiritana, onde eles vivem e trabalham. Isso é o mais importante. E com eles avalio o atual momento da missão e também partilhamos algumas ideias sobre o futuro próximo.

"Em Angola a Igreja, de facto, está forte e interveniente"

Já estive com comunidades em Luanda, Golongo Alto, Calandula, Malange, e agora estou em N’dalatando, uma cidade que se chamava Salazar nos tempos coloniais. O país também vive momentos de crise económica, o que gera algum mal estar no seio das populações fazendo, inclusivé, surgir a ideia de que também pode haver mudanças políticas nas próximas eleições.

A economia depende muito – demais - do petróleo, e o momento atual não ajuda. Mas, as estradas nacionais principais estão razoáveis e as populações estão ativas. No interior mais pobre nota-se pouco investimento na educação e na saúde, o que incentiva demais a fuga de jovens, e não só, para as cidades, à procura das oportunidades que muitas vezes não aparecem. Também se está a verificar o aumento da imigração.

E ao nível da Igreja?

Há que dizer que ao nível da Igreja há muitas vocações, sacerdotais e religiosas, as comunidades cristãs estão muito vivas. A título de exemplo, falo da Missa a que tive a alegria de presidir na enorme Catedral de Malange, na noite do dia 31, com uma casa a abarrotar, muita gente fora e duas horas de pura festa, com danças e cânticos em português e em quimbundo. A Igreja, de facto, está forte e interveniente, com compromissos muito sérios e competentes, sobretudo nas áreas da saúde, da educação, da solidariedade e desenvolvimento e, claro está, da pastoral.

Que desejos tem para 2025?

Ao olhar para 2025, penso imediatamente no Papa Francisco e na sua encíclica sobre o Coração de Jesus (‘Dilexit nos’, que significa ‘Amou-nos’), quando ele fala de um mundo com problemas cardíacos, por isso, há que apostar mais na paz pelo diálogo. Há tanta violência, tanta injustiça à solta. Estamos a viver a terceira Guerra Mundial em pedaços. Também temos de apostar na sinodalidade, caminhar juntos na mesma direção. Apostar na partilha solidária, no encontro de culturas, temos que cultivar a diversidade como riqueza. O acolhimento, os países não são propriedade privada, mas devem ser casa aberta a todos.

Depois, a ecologia integral, temos de proteger a terra, que é a nossa Casa Comum, e amar os pobres. Por isso, mais coração como o coração de Jesus.

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