28 jan, 2025 - 07:00 • Aura Miguel
A relação da inteligência artificial (IA) com a inteligência humana levanta questões antropológicas e éticas, “uma vez que um dos propósitos desta tecnologia é imitar a inteligência humana que a projetou”, lê-se na Nota “Antiqua et nova”, publicada esta terça-feira pelo Vaticano.
O extenso documento é da responsabilidade de dois Dicastérios: o da Doutrina da Fé e o da Educação e Cultura.
As implicações da IA atingem uma vastidão de áreas, incluindo relacionamentos interpessoais, educação, trabalho, artes, saúde, direito, guerra e relações internacionais, que merecem um debate geral.
Por isso, a Nota do Vaticano exorta “aqueles que têm a tarefa de transmitir a fé (pais, professores, pastores e bispos) a se dedicarem, com cuidado e atenção, a esta questão urgente".
Enquanto a inteligência humana “se exerce nas relações”, é “modelada por Deus" e “plasmada por uma miríade de experiências vividas na corporeidade”, a IA “não consegue evoluir nessa direção” pois a sua visão é meramente “funcionalista” e as pessoas são avaliadas apenas com base no trabalho e nos resultados, sem se considerar que “a dignidade humana é essencial e sempre permanece intacta”, mesmo quando se trata de “uma criança não nascida”, “uma pessoa em estado de inconsciência” ou “uma pessoa idosa que sofre”.
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O documento do Vaticano sublinha que uma conceção correta da inteligência humana “implica a abertura da pessoa às questões fundamentais da vida”. E, ao contrário da IA, a inteligência humana “possui uma dimensão contemplativa essencial, isto é, uma abertura desinteressada ao que é Verdadeiro, Bom e Belo, além de qualquer utilidade particular”.
A IA também “não consegue replicar o discernimento moral nem a capacidade de formar relacionamentos autênticos, uma vez que "a inteligência da pessoa se insere numa história de formação intelectual e moral vivida a nível pessoal, que molda essencialmente a perspetiva do indivíduo, nas dimensões física, emocional, social, moral e espiritual de sua vida”.
E, como a IA “não possui a riqueza da corporeidade, do ser em relação e da abertura do coração humano à verdade e à bondade, as suas capacidades, mesmo que pareçam infinitas, são incomparáveis às capacidades humanas de compreender a realidade. Pode-se aprender muito com uma doença, assim como com um abraço reconciliador e até mesmo com um simples pôr do sol”, lê-se no texto.
Há sérios riscos de a IA gerar conteúdos manipulados e informações falsas, difíceis de distinguir da realidade e que podem ser facilmente enganosas.
A Nota do Vaticano fala do que pode acontecer no caso da “alucinação” da IA, sempre que um sistema generativo produz um conteúdo que parece refletir a realidade, mas não é verdadeiro.
“Embora seja difícil gerir este fenómeno, uma vez que a geração de informação que imita a produzida pelos humanos é uma das principais características da IA, ela representa um desafio para manter tais riscos sob controlo. As consequências de tais aberrações e desinformação podem ser muito sérias”, alerta o documento.
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Neste contexto, o Vaticano pede, aos que produzem e usam IA, “um compromisso com a veracidade e precisão das informações processadas por tais sistemas e disseminadas ao público”.
Igualmente importante é uma regulamentação cuidadosa na comunicação, “pois a desinformação, especialmente por meio dos media, controlada ou influenciada por IA, pode-se espalhar involuntariamente, alimentando a polarização política e o descontentamento social”.
Para evitar que a humanidade caia em espirais de autodestruição, o Vaticano pede uma posição clara “contra todas as aplicações de tecnologia que ameaçam intrinsecamente a vida e a dignidade da pessoa humana” e um “discernimento cuidadoso sobre o uso da IA em aplicações de defesa militar”.
No atual cenário mundial, o desenvolvimento e uso de IA em armas "deve ser sujeito aos mais altos níveis de escrutínio ético, com o cuidado de garantir que a dignidade humana e a santidade da vida sejam respeitadas”.
Além disso, as “capacidades analíticas” da IA poderiam ser usadas para ajudar as nações a procurar a paz e a segurança, mas “graves motivos de preocupação ética” são os sistemas de armas autónomos e letais, capazes de “identificar e atingir alvos sem intervenção humana direto”. Esta Nota recorda o apelo do Papa à urgente proibição do seu uso, pois “nenhuma máquina deveria escolher tirar a vida de um ser humano”.
A Nota do Vaticano levanta ainda outras questões relacionadas com o poder sobre as aplicações da IA estar “concentrado nas mãos de algumas empresas poderosas”, tecnologia que acaba por ser manipulada para “ganho pessoal ou corporativo” ou para “orientar a opinião pública para os interesses de um setor”.
Outras preocupações éticas surgem também relacionadas com a economia e trabalho, saúde, educação, casa comum, relações humanas e privacidade.
Por fim, há um mais ponto a considerar, suscitado pelo aparecimento da IA no cenário mundial. O Vaticano renova o seu apelo à valorização de tudo o que é humano: “Tal como observou, há muitos anos, o escritor católico francês, Georges Bernanos, ‘o perigo não está na multiplicação das máquinas, mas no número cada vez maior de homens habituados, desde a infância, a não desejarem nada mais do que aquilo que as máquinas podem dar’”. Ou seja, “a IA deveria ser utilizada apenas como um instrumento complementar à inteligência humana e não substituir a sua riqueza”.