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QUARESMA

"O Papa não tem vergonha de ser frágil"

04 mar, 2025 - 21:59 • Ângela Roque

No arranque da Quaresma, a Renascença conversa com um capelão hospitalar sobre a forma como Francisco tem vivido a sua doença. O padre Fernando Sampaio diz que o testemunho de humanidade do Papa desafia o tempo atual, que é “apressado” e intolerante ao sofrimento.

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O Papa Francisco pediu que nada seja escondido dos fiéis relativamente à evolução do seu estado de saúde, com a atualização a ser feita diariamente, em dois momentos do dia. Por todo o mundo organizam-se vigílias de oração a pedir pela sua recuperação.

Num ano Jubilar dedicado à esperança, o tema marcou muitas das mensagens do Papa, como a que divulgou para o Dia Mundial do Doente (11 fevereiro), assim como a que preparou para a Quaresma, que tem início nesta Quarta-feira de Cinzas, dia 5 de março, que se intitula “A esperança é a âncora da vida” e foi escrita ainda antes do seu internamento hospitalar.

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Em entrevista à Renascença o padre Fernando Sampaio - assistente religioso dos hospitais da Unidade Local de Saúde de Santa Maria, em Lisboa, e que já foi coordenador nacional das capelanias hospitalares - fala do exemplo do Papa e da importância da “esperança” para todos os que se encontram em sofrimento, que não deve ser escondido dos mais novos. Porque, diz, ter consciência da fragilidade dos outros “humaniza”.

Na mensagem para Quaresma o Papa lembra que “a esperança é a âncora da vida”. Na doença, a esperança é muito importante, pode fazer a diferença?

A esperança faz sempre a diferença. Recordo-me que quando estive no IPO [Instituto Português de Oncologia], quando os doentes perdiam a esperança e o fim estava muito próximo. Mas, enquanto mantinham a esperança, de facto, conseguiam resistir a coisas tremendas, às vezes.

Agora, na doença a esperança tem muitas configurações: pode ser a da cura, mas muitas vezes não é possível a cura e o doente sabe disso. Então a esperança é mais relativa: pode ser, por exemplo, não morrer só. Pode ser ter uma mão para agarrar no tempo da partida. Às vezes, a esperança é poder ver o casamento do filho, poder ver o batizado de um neto, assistir a uma festa familiar, ou participar de um determinado acontecimento. A esperança tem muitas configurações, mas é muito importante no doente para o manter de pé e de cabeça levantada.

"Como João Paulo II, o Papa Francisco vive a doença dele com muita transparência. Não esconde, não tem vergonha de ser frágil e de mostrar a sua fragilidade"

Olhando para o atual momento de fragilidade do Papa Francisco, que exemplo é que tem dado aos cristãos, e também a quem não é crente, sobre a forma como se deve encarar a doença, a dor, a finitude?

Eu admiro-o, como admirei o Papa João Paulo II, porque ele vive a doença dele com muita transparência. Não esconde, não tem vergonha de ser frágil e de mostrar a sua fragilidade, assim como o Papa João Paulo II também não teve, porque nesse sentido ele assume-se como frágil e vive a sua fragilidade em comunhão connosco.

E nesse sentido, o desafio é que nós agarremos também a nossa fragilidade, não tenhamos vergonha dela e a vivamos em comunhão uns com os outros e na relação com Deus. E ele vive a sua fragilidade nesta dimensão, na comunhão com a Igreja, portanto na comunhão com Deus também, e não tem vergonha da fragilidade, pelo contrário, dá testemunho através disso, como ele reage às coisas…

A naturalidade é importante ser passada?

Exatamente, a naturalidade com que ele enfrenta as coisas. Isso é muito importante para que, de facto, a sua mensagem de humanidade passe.

O título da mensagem para o Dia Mundial do Doente, que se assinalou em fevereiro, foi "A esperança não engana e fortalece-nos nas tribulações"…

Exatamente. E fortalece-nos imensamente, como disse há pouco, porque nos mantém de cabeça erguida e levantada na luta pela vida e pela saúde, ou então na luta contra o sofrimento, sobretudo contra o sofrimento absurdo. O terrível, às vezes, no sofrimento é o sofrimento absurdo, para o qual nós não encontramos sentido e que, muitas vezes, nos interroga de que vale a pena sofrer assim.

"É necessário as crianças, os adolescentes e os jovens contactarem muito mais com as pessoas fragilizadas"

Muitas vezes leva às situações de desespero…

De desespero, sim! Neste sentido é fundamental que mantenhamos a esperança, e a esperança tem um nome, para nós é Cristo. Então, manter-se na esperança é manter-se unido a Cristo, confiar nele e saber que a nossa vida é frágil, é precária e é mortal, naturalmente. E mesmo que a morte se aproxime, a morte não é o fim, porque na nossa comunhão com Cristo a promessa da vida eterna continua de pé. E Cristo não nos enganou, nunca, pelo contrário, sempre nos disse a verdade e esta verdade está de pé, esta promessa está de pé e este convite para participar da casa do Pai do Céu é das coisas mais fabulosas e que nos alimenta.

Eu tenho visto muitos doentes que, de facto, frente à sua fragilidade, frente, no fundo, à morte que se aproxima, revelam uma alegria insondável, interior, silenciosa, mas fantástica, para enfrentar as coisas.

E, às vezes, o próprio doente dá força a quem está à volta...

Exato. E, neste sentido, o viver a doença celebrando os sacramentos, recebendo a comunhão, ajuda-os muito a manter a esperança de fé. A fé, a oração, os sacramentos ajudam a manter a esperança de fé e na luta pela vida, pela saúde, ou se não é pela saúde, é para, de facto, para manifestar com ternura e com carinho, com esperança, tudo aquilo que se refere à promessa que Jesus nos deixou.

Essa ajuda é assegurada, normalmente, pelos capelães, pelos assistentes espirituais nos hospitais. Já foi coordenador nacional das capelanias hospitalares, é atualmente responsável pela Pastoral da Saúde no Patriarcado de Lisboa e continua a ser capelão na Unidade de Saúde Local de Santa Maria.

Sim, há 29 anos, vai fazer 30 daqui a pouco.

Já acompanhou, por isso, muitos doentes, e continua a acompanhar. Cuidar implica sempre esperança, mesmo para quem não é crente?

Sim, sim, sempre. Cuidar implica sempre a dimensão da esperança. Imagine, se um médico não tem esperança no doente, às tantas, ele desiste. Esta dimensão da esperança, no fundo, tem a ver com ajudar o doente a não desesperar, mas a manter-se vivo, a manter-se na luta, a manter-se de pé e de cabeça levantada, apesar da fragilidade e da mortalidade. E nós, que somos crentes, Deus está connosco, Deus está em nós, Ele não deixa de estar presente no nosso próprio sofrimento, pelo contrário, desafia-nos sempre a pegar na nossa cruz também aqui e levá-la até ao fim, sem desanimarmos, sem desfalecermos, dando testemunho da esperança que temos em nós, que é o próprio Senhor.

"Ao nível da catequese, porque é que não se fala na morte, na fragilidade?"

Esta ajuda espiritual, esta assistência religiosa, é sempre pedida pelo doente?

Sim, frequentemente pedida pelo doente. Acontece, às vezes, que quando passamos, os próprios doentes a pedem. Às vezes veem-nos passar, dar assistência a outros doentes e pedem. Este é um problema que necessitava de ser visto pela comunidade cristã, porque frequentemente os doentes chegam ao hospital e parece que esqueceram que existem capelães que estão ao seu serviço, é necessário sempre recordar aos doentes que há capelães nos hospitais, ao serviço.

Não é uma informação disponível, acessível?

Não. Dá a impressão que há um esquecimento. Falamos disso em muitas circunstâncias, não percebo porque é que as pessoas dizem: "não sabia que havia aqui capelão". Às vezes as pessoas sabem, outras vezes as pessoas esquecem-se de pedir. Às vezes não pedem, por preocupação com a própria doença, não pedem, e depois quando passamos é que acabam por pedir.

E depois, quando a recebem, valorizam?

Valorizam, sim. Mas é importante que os doentes peçam exatamente por si próprios a assistência espiritual religiosa. É muito importante. A assistência espiritual religiosa é um direito dos doentes, é um direito e um ato de liberdade, porque ao manifestar esta liberdade estão a afirmar a própria liberdade religiosa. Isto assiste-lhes como direito da assistência espiritual religiosa.

Esta assistência também pode ser prestada, e é prestada, aos profissionais de saúde?

Também pode ser prestada e também a prestamos aos profissionais de saúde quando eles a pedem, sim. Em muitas circunstâncias, às vezes em pequenas conversas, também pedem os sacramentos, às vezes querem um conselho, às vezes querem falar, desabafar. Há muitas formas de lhes prestar assistência espiritual, também para fortalecer a esperança, de que falava há pouco, que é importante que os profissionais de saúde também transmitam. Porque sejam médicos, enfermeiros ou outros, são pessoas humanas, com as suas dificuldades, com os seus problemas familiares, pessoais e profissionais, e muitas vezes têm a necessidade desta ajuda espiritual também.

Por outro lado, se olhamos ao hospital, o hospital é fundamentalmente um lugar de esperança, senão ninguém lá punha os pés, não é? Quando vamos ao hospital, vamos na esperança de que possam ajudar-nos a superar o problema que levamos connosco, para recuperarmos a saúde e voltarmos a casa. Nesse sentido, os profissionais de saúde são portadores de esperança. São a esperança, muitas vezes para os doentes, porque eu chego à urgência, aquilo que mais anseio é que um médico me venha ver e dizer o que tenho, que me venha ajudar a superar a dor e o sofrimento. Isto não é esperança?

Os médicos são profundamente portadores de esperança. Não só são portadores de esperança, como geram a própria esperança, no diagnóstico que fazem, nas curas e cuidados que realizam. Eu diria que são tecelões de esperança.

Voltando à atual situação de fragilidade do Papa Francisco, o seu internamento tem sido acompanhado com preocupação em todo o mundo, com muitas vigílias de oração, até por parte de crentes de outras religiões, como vamos sabendo. Mas, olhando para a forma como os próprios meios de comunicação social estão a gerir o tema e esta fase, concorda que há alguma impaciência, e que isso também é fruto da forma como nós, hoje, na sociedade, encaramos a dor e o sofrimento?

Sim, também.

"Que nós, à semelhança de Jesus, nos aproximemos dos outros com humanidade, sensibilidade, ternura e os ajudemos a ser pessoas humanas até ao fim"

Não temos paciência para a espera?

Temos dificuldade, de facto, na paciência, neste mundo onde se corre atrás de tudo e mais alguma coisa, sem saber, às vezes, para onde é que corremos. Geralmente, somos muito impacientes e a impaciência aqui acaba por, em muitas circunstâncias, gerar aquilo que não deve gerar.

Olhando para o Papa, que é um idoso, igual aos idosos que temos nas nossas famílias, vemos que há alguma incompreensão da sociedade hoje relativamente ao sofrimento do idosos, e a estes processos de tratamento, que às vezes são prolongados…

E gostávamos que as coisas se despachassem mais depressa. Às vezes, até, se calhar, gostaríamos que os idosos se despachassem não no sentido da cura, mas no sentido de partirem deste mundo…

Fazendo o sofrimento, como sabemos, parte da vida, seria importante haver uma educação para o sofrimento? No sentido de se encarar estas fases, a doença e até a morte, com mais naturalidade?

Eu penso que sim, que é necessário, a meu ver, as crianças, os adolescentes e os jovens contactarem muito mais com as pessoas fragilizadas, que haja muito mais contacto e muito mais proximidade. Aquilo que vemos muitas vezes é o afastamento dos mais novos destas situações de maior fragilidade dos mais velhos. Isso não é educação. Nós precisamos de saber que somos frágeis, que somos vulneráveis, que podemos adoecer. Isto não é mal nenhum.

E que há momentos em que precisamos de cuidar uns dos outros e cuidar de nós próprios?

Sim. Aliás, a palavra homem quer dizer "humus", "terra", "frágil", "vulnerável". Exatamente porque somos "terra", "frágil", "vulneráveis", precisamos cuidar uns dos outros, e é no cuidar uns dos outros que nos tornamos humanos. O que quer dizer que a nossa fragilidade não nos desumaniza, pelo contrário, humaniza-nos, torna-nos mais sensíveis aos outros, mais sensíveis aos mais frágeis. Porque senão tornamo-nos um bando de arrogantes e profundamente desumanos. Nesse sentido, a fragilidade não é mal nenhum.

Por exemplo, ao nível da catequese – e eu, que estou na Pastoral da Saúde, uma vez quis fazer essa proposta - porque é que não se fala na morte, na fragilidade? Por exemplo, quando há um doente na paróquia que faz anos, porque é que as crianças não lhe vão dar os parabéns, comer um bolo com o doente ou com o idoso? Quando o padre vai dar a unção à casa de um doente, porque é que não há de levar jovens ou crianças consigo para animar, para cantar e para ajudar? Para aproximar a paróquia, as crianças, os adolescentes e os jovens dos mais frágeis. É extraordinariamente importante para fazerem a experiência da fragilidade e da vulnerabilidade.

O Papa Francisco tem alertado muitas vezes para a cultura da morte que marca a sociedade atual. Também depende desse grau de consciência relativamente à doença e ao sofrimento conseguir vir a ter políticas e medidas que garantam mais o cuidado integral das pessoas nestas várias etapas da vida?

É importante que haja políticas de maior proteção, de maior cuidado dos mais frágeis, para que não sejam descartados. Mas as políticas, e sobretudo as leis, não fazem tudo. São apenas indicadores ou desafios, se depois não se prestam os cuidados necessários e dentro da humanidade necessária, e se ao nível das comunidades não há grupos misericordiosos e compassivos que se aproximem dessas pessoas, de nada adiantam as políticas ou as leis.

Por exemplo, fez-se a lei de cuidados paliativos, mas a seguir não se criaram estruturas de cuidados paliativos. Para que adianta haver uma lei de cuidados paliativos? Todos têm direito a estes cuidados, mas não há estruturas para que todos tenham acesso aos cuidados paliativos.

Nós, geralmente, viramos tudo ao contrário. Seria muito mais importante criar estruturas para cuidados paliativos e para cuidados continuados, para uma humanização maior no envelhecimento e nos cuidados, e depois, a seguir, ajudar legalmente nestas coisas. Porque normalmente criam-se super-estruturas ao nível do pensamento, mas a seguir, na realidade, elas não estão lá. Também porque não há meios económicos para fazer, é difícil depois tornar esta realidade palpável e visível, para que ninguém seja descartado, mas as pessoas sejam tratadas humanamente até ao fim.

Conversamos a propósito da situação de fragilidade do Papa Francisco e da sua mensagem para a Quaresma, que recorda que a esperança é a âncora da vida. Quer deixar alguma mensagem para esta Quaresma?

A mensagem mais importante, a meu ver, é que sejamos humanos, sejamos sensíveis, que nos deixemos embalar pela esperança, que é Jesus Cristo para nós. E que nós, à semelhança de Jesus, nos aproximemos dos outros que estão ao nosso lado, muitas vezes até na nossa casa, com humanidade, com sensibilidade, com ternura e os ajudemos a ser pessoas humanas até ao fim.

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