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Entrevista Renascença/Ecclesia

Presidente da Cáritas do Funchal: "Existem casos muito graves" na Madeira, mas "fome não existe"

16 mar, 2025 - 08:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

No arranque da Semana Cáritas é convidado da Renascença e da Agência Ecclesia, Duarte Pacheco, o presidente da Cáritas diocesana do Funchal.

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O presidente da Cáritas Diocesana do Funchal, Duarte Pacheco, está preocupado com as dificuldades que se verificam no acesso à habitação no arquipélago.

Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, o responsável admite mesmo a eventual "exploração financeira" das populações migrantes, numa altura em que há falta de mão-de-obra na região, fator que potencia o incremento da pressão ao nível da habitação.

Para o presidente da Cáritas do Funchal, o preço da habitação "gera um problema grave" e leva a que haja "muitas pessoas a precisar de ajuda", apesar de terem o seu emprego. Ainda assim, Duarte Pacheco diz que "não há fome" na Madeira, embora reconheça a existência de "um conjunto de casos bastante frágeis".

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No plano da proteção social, o presidente da Cáritas do Funchal reconhece a existência de dificuldades acrescidas devido às consecutivas crises políticas no arquipélago: “É natural que, se estamos a meio de uma legislatura, se há projetos que estão em vias de desenvolvimento, com estas alterações do Governo é natural que estes projetos vão regredir um pouco, vai demorar mais um tempo para se ter resposta."

Noutro plano, o presidente da Cáritas do Funchal diz que “poderá ser dramática" uma eventual crise no sector do turismo da Madeira, porque há “imensas atividades ligadas todas elas ligadas à parte turística. “É lógico que poderá ser um pedaço dramático essa situação. Aliás, basta comparar com o período da pandemia em que tudo parou”, sublinha.

Duarte Pacheco admite ser "um problema real" o despovoamento de algumas zonas da Madeira, admitindo mesmo haver "zonas que vão ficar desertas".

"O desenvolvimento contribui para todos, quer a nível laboral quer a nível cultural"

A Cáritas diocesana do Funchal tem vindo a apoiar centenas de famílias nos últimos anos. Quais são as áreas de maior fragilidade social que a instituição identifica?

Em relação aos dados, aos números, nós focamos, por vezes, muito nos números e esquecemos um pouco a essência do que está por trás. Desde 2022, a Cáritas do Funchal tem registado uma ligeira diminuição dos novos pedidos de apoio e isto está relacionado, um pouco, com a colocação das pessoas no mercado de trabalho, uma vez que existe alguma carência de mão-de-obra cá na região.

Há alguma bolsa de pobreza, alguma zona específica da ilha que gera maior preocupação?

Não. É notório que há uma zona, os bairros sociais, que normalmente estão associados a pessoas com menos rendimentos. Não é uma regra, mas estão associados um pouco a esta situação. Poderão ser mais problemáticas a zona de Câmara de Lobos e a zona da Camacha, mas não é exclusivo. Centra-se ali porque há alguns bairros sociais de alguma dimensão.

Pode dizer-se que há fome no arquipélago? Se isso acontece, onde é que se verifica o problema?

Eu vou talvez ser um pouco atrevido em relação a essa resposta: eu acho que fome não existe. Agora, existe um conjunto de casos bastante frágeis. Fome propriamente, literalmente no sentido do termo, não existe. Existem casos muito graves, muito complicados, isso sim, existem.

"Ando há algum tempo nesta área da intervenção social e raramente as pessoas dirigem um agradecimento"

Uma das áreas que tem gerado maior preocupação é da habitação. A pressão turística agrava o problema na Madeira?

Faz parte de um todo, mas acho que não é o fator número um. De Norte a Sul, e até já é um problema que ultrapassa o nosso país, a Europa também está começando a ter esse problema. A falta de habitação, os elevados custos com a mesma geram um problema grave. Numa família média, por exemplo, a grande fatia do orçamento familiar é despendido para a habitação, quer com empréstimo quer com o arrendamento, se for o caso. Portanto, às vezes vou buscar este exemplo, que é muito fácil de visibilizar o que estou a dizer. A duas pessoas que estão a ganhar um salário mínimo, dois salários mínimos, portanto, tirando as despesas básicas, o que é que sobra? São pessoas que estão a precisar de ajuda, tendo o seu salário, o seu vencimento, o seu emprego. Mas o fruto desse trabalho não responde às necessidades do dia a dia, devido ao elevado custo de vida.

Têm sido solicitados para ajudar nessa questão da habitação, nomeadamente no pagamento de rendas?

Sim, sim, sim, mas nós, em princípio, não temos disponibilidade para pagar rendas, porque o dinheiro não abona na nossa missão, digamos assim. Mas tentamos sempre em conjunto arranjar uma solução, articulando com as entidades públicas que têm a tutela da habitação e as câmaras municipais. Ou, então, na nossa ação direta, por exemplo, através da atribuição de um cabaz. A pessoa pode, de facto, de não precisar de alimentos, porque o rendimento ainda dá para os alimentos, mas nós ao atribuirmos um cabaz àquela família. É uma forma também de ajudar. Porque ela terá 50 ou 60 euros livres para ser aplicado noutro custo. E ao ser aplicado noutro custo, é num custo de necessidade, não é num supérfluo.

Os problemas sociais que vamos identificando têm sido agravados pela sucessão de crises políticas aí na Madeira?

Eu julgo que tem um fator que poderá ter essa conotação. É natural que se estamos a meio de uma legislatura, se há projetos que estão em vias de desenvolvimento, com estas alterações do Governo é natural que estes projetos vão regredir um pouco, vai demorar mais um tempo para se ter respostas.

Há políticas sociais que se perderam nesse emaranhado eleitoral?

Eu julgo que sim, julgo que sim.

Certamente, tem muita interação com pessoas que vão acompanhando. O que vão elas dizendo sobre a instabilidade que vai afetando o arquipélago?

Esta instabilidade já passou para a região. Começou a nível nacional e o problema praticamente reside na mesma situação. É lógico que as pessoas votam, acreditam no plano apresentado e, depois, por questões mais particulares, não propriamente pela não execução das políticas assumidas e dos planos apresentados, vamos perdendo no tempo. E é lógico que as pessoas estão à espera que resolvam as suas situações pessoais de acordo com o que é dado de um plano de um governo. Com estes entraves sucessivos as coisas ficam por fazer e as pessoas, cada vez mais, ficam em situação difícil e defraudadas com o ideal que pensavam que iria acontecer.

"Acho que é bom termos esta diversidade, mas tem de ser acutelada à medida que as coisas vão acontecendo, não vamos abrir portas de forma espontânea"

Quero fazer uma pergunta da minha experiência pessoal, também sou madeirense, cresci fora da região e a Madeira sempre foi uma terra de imigração e nos últimos anos tem vindo a receber muitas pessoas de fora, muitas delas pessoas que deixaram a Venezuela, onde eu cresci, por causa da crise política e social no país, e também muitos outros imigrantes. É uma situação que traz novos desafios a quem está no terreno?

Traz, traz, e, por acaso, não neste momento, mas há uns dois ou três anos, em relação às pessoas que imigraram para a Venezuela, que regressaram - e regressou um número considerável, ainda - tivemos alguma dificuldade, porque essas pessoas chegaram sem nada e foram pessoas defraudadas.

Sim, em relação a muitas delas não se pode propriamente falar de um regresso, porque tinham a vida toda organizada fora da região...

Por acaso, e devido um pouco a este crescimento económico que a região tem tido, as pessoas começaram a ser integradas socialmente e a nível de trabalho. havendo falta de mão-de-obra e as pessoas foram à luta, algumas criaram os seus próprios negócios e a Cáritas deixou de apoiar essas pessoas.

Há uma coisa aqui que eu tenho que registar: ando há algum tempo nesta área da intervenção social e raramente as pessoas dirigem um agradecimento. Faço questão de destacar que os imigrantes da Venezuela que apoiamos, quando acabaram o processo de apoio, vieram-nos bater à porta e agradecer.

Acho isto interessante. E também temos que falar nisto - no reconhecimento - não só da Cáritas, porque esta situação não é só da Cáritas. Outras IPSS também que estão no terreno partilham da mesma opinião. Não estamos aqui à espera de um agradecimento, mas cai bem e simboliza alguma confiança e algum trabalho feito. É um pouco nesta perspetiva.

Este fluxo migratório não se esgota nesta população de que temos vindo a falar: há outras pessoas que vêm de países, até de regiões como as que estão agora a chegar ao Portugal continental. Essa imigração nova tem também alguns focos de pobreza ou dificuldades aliadas a essa chegada a um sítio completamente desconhecido?

Eu acho que, por enquanto, não é visível essa situação. As pessoas que estão cá estão quase todas ligadas ao mundo do trabalho, têm o seu rendimento, pouco ou muito, mas têm o seu rendimento. Agora, julgo que poderá ser algum problema no espaço, talvez curto tempo, é a parte com a habitação. Nisto temos de ter muito cuidado.

Recentemente, tive uma reunião de trabalho com a direção regional que tem a tutela das comunidades, e estamos preocupados com isso porque, uma vez que não existe habitação, as pessoas estão a ficar aí em alguns sítios, possivelmente, não estou a afirmar, estou a supor, possivelmente poderão até ser exploradas financeiramente em relação ao custo com as habitações. Em que condições é que vivem? Estão integradas ou não?...

Acho que passam a estar integradas porque nós vemos no Funchal algumas pessoas circularem a fazer a sua vida, é natural que estão associados aos grupos da mesma etnia, é lógico, porque falam a mesma língua, têm alguma proximidade em comum, mas acho que é preciso termos muito cuidado em relação às condições habitacionais em que essas pessoas estão a viver, de modo a que isto não se possa tornar um problema grave. Por enquanto, a situação é controlável, mas temos de ter este cuidado. Não é normal na região termos esta realidade, mas julgo que passará a ser mais permanente, dada a falta de mão-de-obra em todas as áreas laborais. Há muita falta de mão-de-obra.

"É sempre através da generosidade e boa vontade das pessoas que se dispõem a colaborar connosco que vamos gerindo o nosso dia-a-dia"

Muitos dos que nos ouvem terão ficado impressionados com as mudanças que aconteceram no arquipélago e com tudo o que tem ocorrido ao longo das últimas décadas. Esse desenvolvimento chegou a todos ou continua a haver grandes assimetrias na região?

Acho que vou ser um pouco paradigmático: acho que chega a todos, pode não chegar de forma direta, mas o desenvolvimento contribui para todos, quer a nível laboral quer a nível cultural, porque passamos a conhecer novas realidades que estávamos limitados, ainda mais sendo uma ilha com alguma limitação de acesso. É natural que há coisas a que não estávamos habituados, que vamos ter de saber viver com elas e ganhar experiência com essa realidade. Por isso, acho que é bom termos esta diversidade, mas tem de ser acutelada à medida que as coisas vão acontecendo, não vamos abrir portas de forma espontânea.

Esse pleno emprego de que falava há instantes teve reflexo ao nível da diminuição dos pedidos de ajuda da Cáritas…

Exatamente. Nós analisamos praticamente ao pormenor porque é que havia esta diminuição dos pedidos de ajuda ao longo dos anos e quase todos estavam relacionados com o facto das pessoas estarem no mundo do trabalho.

Se houver uma crise, por exemplo, no setor do turismo, poderá ser fatal para muitos os empregos?

É lógico que poderá ser, porque nós temos imensas atividades que estão todas elas ligadas à parte turística, desde os hotéis, restaurantes, alojamentos locais e tudo mais. E há muitas empresas que prestam serviços a estas instituições. Portanto, é lógico que poderá ser um pedaço dramático esta situação. Basta comparar com uma situação não muito distante, que foi o período da pandemia, onde tudo parou. De facto, foi grave esta situação e é natural que, havendo qualquer mexida no turismo, todos iremos sentir dificuldade.

Na Madeira, há muita diferença em termos de população, há regiões a ficar abandonadas, há uma concentração de população muito grande em determinados locais, sobretudo à volta da zona do Funchal. Pergunto-lhe se é um problema que prevê que vá continuar e se há um risco real de despovoamento, um bocado idêntico ao que tem acontecido em Portugal continental, em algumas regiões?

É natural que se temos uma população mais envelhecida a precisar de apoio, as pessoas vão-se deslocar para uma zona onde têm esse apoio mais permanente. E há zonas que vão ficar desertas, porque a natalidade está a baixar. É um problema que, de facto, não sei como é que se resolve, é um problema que irá acontecer de certeza absoluta e não tarda muito, temos essa realidade. Já temos, mas, por enquanto, ainda conseguimos contornar a situação, mas é um problema real que irá acontecer.

Na zona norte, por exemplo, destaco as zonas do Porto Moniz, que é até uma zona de turismo por excelência. A população é muito baixa, Santana também. São realidades onde vão começar a aumentar de facto esses problemas.

"Gostaríamos que o voluntariado fosse mais espontâneo"

Estamos na semana Cáritas, que inclui o seu peditório anual. Qual a relevância deste peditório para a Cáritas do Funchal e, já agora, notam algum decréscimo na capacidade solidária das pessoas?

O peditório é sempre uma mais-valia para a Cáritas do Funchal, porque nós não temos valências que nos deem rendimentos. É sempre através da generosidade e boa vontade das pessoas que se dispõem a colaborar connosco que nós vamos gerindo o nosso dia-a-dia.

Eu acho que as pessoas são solidárias. Do meu conhecimento destas andanças, nós portugueses somos bastante solidários, não existe aquela disponibilidade permanente, digamos assim, mas as grandes causas movem-nos e temos tido provas disso ao longo dos tempos, quer aqui na região quer a nível nacional. Destaco os incêndios, que têm assolado Portugal, de Norte a Sul e aqui na região também, as intempéries... Aí, temos tido a prova da grande solidariedade das pessoas para com as instituições, de forma a fazer chegar ajuda a quem mais necessita.

A vertente social das empresas tem ajudado também a atenuar eventuais dificuldades? Contam com muita ajuda a esse nível?

Temos. É a nossa tábua de salvação. Os serviços públicos, quer através do Governo Nacional com a tutela da intervenção social quer através das autarquias, são fundamentais, porque a Cáritas do Funchal tem a designação de Cáritas do Funchal, mas não cobre só a área do Funchal, cobre a ilha vizinha ao Porto Santo também.

Em relação ao recrutamento de voluntários, tanto para este peditório que vai decorrer como para as atividades normais, têm tido dificuldade?

Voluntários têm sido um pouco difíceis de angariar. Aquele voluntário permanente, digamos assim, depois da pandemia literalmente desapareceu, não existe. Nós fazemos vários apelos, mas não há voluntários com disponibilidade para estar e nos acompanhar praticamente uma vez, duas por semana. Nestas grandes causas, por exemplo, quer na recolha de alimentos quer noutras campanhas que fazemos, conseguimos alguns voluntários, mas aqui vamos bater sempre às portas dos mesmos, que é a malta nova. Vamos às escolas e as escolas, de facto, têm sido incansáveis para connosco: envolvem-se e envolvem as famílias. Gostaríamos que o voluntariado fosse mais espontâneo, mas não existe. Não é só com a Caritas, é com todas as áreas, com as IPSS que têm a intervenção social.

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