30 mar, 2025 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)
O bispo D. Nuno Brás, que é vice-presidente das Conferências Episcopais da União Europeia (COMECE), diz que a Europa não tem feito tudo o que está ao seu alcance para que se atinja "uma paz justa e duradoura" na Ucrânia.
No final de uma reunião dos bispos europeus que refletiu sobre a renovação da Unidade Interna da Europa e o seu empenho em ser ator global para a paz, o episcopado da Europa reafirma que não é desejável uma paz a qualquer preço na Ucrânia, defendendo que só é aceitável uma paz que "possa fazer justiça ao povo ucraniano”.
Em entrevista à Renascença e Agência Ecclesia, D. Nuno Brás revela que a COMECE vai passar a ter um observador permanente da Ucrânia: "Estando aberto o processo tendo em vista o pedido de adesão da Ucrânia à União Europeia, achamos por bem ter um observador permanente, um delegado da Igreja na Ucrânia que possa seguir os trabalhos da COMECE."
Na entrevista, D. Nuno alerta também para a possibilidade de a Europa perder o seu papel de intervenção ativa a nível mundial: “A União Europeia está a viver um momento em que, se não houver transformação, perderá o seu papel de interveniente ativo na cena mundial."
O prelado admite ser perigoso o anunciado investimento europeu em defesa e questiona o eventual desvio de dinheiro destinado a outras áreas para esse efeito, mas sublinha que a “Europa tem de arranjar formas de se defender”.
D. Nuno Brás diz que “continua a ser inspirador para todos” o pensamento do Papa Francisco sobre a guerra e lembra que “antes da doença do Papa, a sua posição era de tal forma clara que continua a inspirar”.
Já sobre a recente crise política na Madeira e as eleições regionais do último domingo, o bispo do Funchal acredita que “a maior participação foi no sentido de garantir estabilidade, e portanto, esperemos que esta estabilidade aconteça”.
“Não posso deixar de saudar esta garantia de quatro anos de tranquilidade política”, diz.
"A Europa tem de arranjar formas de se defender"
Três anos depois da guerra em larga escala na Ucrânia, a COMECE pediu solidariedade transatlântica e mundial para acabar com o conflito através de negociações. O que tem faltado para chegar à paz global, à paz justa e duradoura?
Creio que tem faltado precisamente isso: querer chegar à paz e à paz justa e duradoura. Ou seja, nós não podemos querer a paz a todo o custo. Trata-se de uma questão de justiça para com a Ucrânia, obviamente, mas, por outro lado, precisamos de fazer caminho para a paz. Muitas vezes, a Europa também não tem feito este caminho ou, pelo menos, não tem avançado neste caminho, instalando-se um pouco naquilo que é o dinamismo da guerra, simplesmente. Claro que não podemos deixar de apoiar a Ucrânia, mas, ao mesmo tempo, também não podemos deixar de perceber que a paz, e a paz justa, é o nosso objetivo e para isso precisamos de dar passos concretos.
Estávamos a falar da Europa, mas é inegável que, desde que tomou posse a nova administração norte-americana, temos visto também alguns sinais contraditórios em relação a este conflito. Há uma tendência para valorizar, sobretudo, a parte económica. Isso pode ser visto até como algo imoral num contexto de guerra?
Bom, vamos lá ver... Eu penso que sim, pode ser, obviamente. O dinamismo económico e as contrapartidas económicas são realidade e, portanto, são um dos pontos da equação, mas não podem ser a equação. Queremos a paz, mas uma paz que possa ser aceite pela Ucrânia e que possa, minimamente, fazer justiça ao povo ucraniano que, ao longo destes anos, tem perdido tantos dos seus jovens, tantos dos seus homens e tantas das suas realidades já conquistadas com tanto trabalho.
"A União Europeia (…), se não houver transformação, perderá o seu papel de interveniente ativo na cena mundial"
Não é uma paz a qualquer preço, não é?...
Exatamente, é isso. Creio que é muito importante que isso se compreenda, que isso se acentue. Claramente, esta nova administração norte-americana tem uma perspetiva essencialmente económica, essencialmente de negócio, essencialmente de oportunidade para fazer negócio, mas essa não pode ser a única perspetiva, como é óbvio. É natural que possa ser um dos dados da equação. Agora, creio que a grande questão é sempre aquela de uma Europa que é tão complicada nos seus dinamismos - e, se calhar, não pode deixar de ser de outra forma, pelo menos, enquanto tivermos esta configuração da União Europeia - que acaba por ser lenta e por não reagir àquilo que devia. Esta demora europeia sabe a pouco, é pena, não podermos reagir de outra forma.
Olhando o contexto da COMECE, que tem episcopados do leste da Europa, dos países nórdicos, do Báltico…
A partir desta reunião vamos ter também um observador permanente da Ucrânia, tendo em vista que a Ucrânia fez o pedido de adesão à União Europeia. Estando o processo aberto já, também nós achamos por bem ter um observador permanente, um delegado da Igreja na Ucrânia que possa seguir os trabalhos da COMECE.
E que possa facilitar o diálogo, não é?
E que pode facilitar o diálogo, obviamente.
"A própria economia europeia necessita de dar grandes passos"
Como é que os membros do episcopado destes países que estão mais próximos do conflito olham para a situação? Percebem, da parte deles, se há uma noção de solidariedade nos países ocidentais?
Sim, isso pareceu-me muito claro logo desde o início: quem acolheu os refugiados ucranianos foi essencialmente a Igreja, institutos ligados à Igreja. Recordo de uma forma muito particular a Polónia e as várias dezenas de milhares de refugiados que a Igreja na Polónia acolheu. Na Polónia e nos países limítrofes, foi muito claro desde o princípio e continua a ser claro: um apoio à realidade ucraniana, não apenas em termos políticos, mas sobretudo, por parte da Igreja, em termos de acolhimento, de disponibilidade para aquilo que as pessoas concretas na Ucrânia necessitam.
O aumento do investimento em armamento é uma resposta aceitável neste cenário? Por exemplo, a Europa prepara um investimento da ordem dos 800 mil milhões de euros em defesa. Está a criar-se um clima de rastilho iminente?
Por um lado, isso é uma hipótese, enfim, porque quanto mais armas existem, mais fácil é alguma disparar, claro que sim. Por outro lado, temos de ser também realistas e se os Estados Unidos não garantem, em relação à Europa, aquilo que era habitual, não garantem a defesa da Europa, a Europa tem de arranjar formas de se defender e isso parece-me também claro. Agora, de onde vem o dinheiro?
É desviado, não é? De outros sítios, provavelmente…
Pois, essa é claramente a outra questão, mas creio que também não podemos deixar de ser realistas, não podemos ser ingénuos e dizer que sem a existência de uma possibilidade da resistência, de resistir a um eventual invasor, a Europa poderá viver descansada e tranquila com toda a sua prosperidade. Isso, obviamente, neste momento, não é realista.
"A administração Trump foi eleita pelos americanos e, portanto, é um dado com o qual nós temos de contar, não podemos, simplesmente, demonizar"
Ainda no quadro dos contactos que tem com os responsáveis de outros episcopados, pergunto-lhe se este novo quadro de relações com os Estados Unidos e com a administração Trump tem gerado estas preocupações?
Sim, claramente. A nova administração americana é um dado que está neste momento sempre presente nas nossas reflexões, nos nossos debates. A administração Trump foi eleita pelos americanos e, portanto, é um dado com o qual nós temos de contar, não podemos, simplesmente, demonizar. É um dado com o qual nós contamos e, pronto, é o que é. Acabou. É a expressão também da vontade do povo americano, com algumas coisas das quais estamos mais próximos, como muitas outras das quais discordamos.
E há que fazer caminho aprendendo também com esta nova administração e como se conviver com ela...
Exatamente, como conviver com ela e, eventualmente, até como tentar convencê-la de que não está certa, de que não está correta e, portanto, ajudar também esta administração, eventualmente, a fazer caminho.
"O Papa Francisco continua a ser inspirador (…) Creio também que continua a ser inspirador para a própria Europa"
A diplomacia da Santa Sé tem sido muito ativa na tentativa de criar pontos de diálogo entre as partes em conflito, embora nem sempre bem entendida pela opinião pública. Espera que este esforço seja seguido por outros protagonistas?
Bom, esperamos sempre que sim. A diplomacia da Santa Sé tem estado, sobretudo, muito ativa na troca de prisioneiros e creio que aí tem conseguido bastante sucesso. Houve várias trocas de prisioneiros que foram mediadas pela diplomacia da Santa Sé ou, pelo menos, inspiradas pela diplomacia da Santa Sé.
Que bom seria que as várias diplomacias europeias se unissem, não apenas no sentido das trocas de prisioneiros, mas, sobretudo, na possibilidade de caminhar para uma paz efetiva. Creio que, neste momento, a grande questão não é convocar à guerra, convocar ao conflito. Neste momento, a grande questão é como encontrar caminhos que possam ser de paz duradoura para ambos os lados do conflito.
Nesse sentido, sabendo que o Papa Francisco continua em convalescença, a sua habitual voz de liderança nestas matérias é hoje ouvida de outra forma. Acredita que as suas palavras e gestos estão a fazer falta neste momento delicado?
Claro que sim. Também aqui, a realidade é o que é. De qualquer forma, eu creio que antes da doença do Papa Francisco, a sua posição era de tal forma clara que continua a inspirar, seja os esforços - que são sempre delicados e que são sempre muito discretos - da diplomacia vaticana, seja as declarações dos episcopados do mundo inteiro e também da posição do próprio Vaticano.
Quanto a isso, creio que o Papa Francisco continua a ser inspirador para todas estas posições e para todas estas intervenções. Creio também que continua a ser inspirador para a própria Europa. E, portanto, neste sentido, é um ponto de referência, sempre.
"Entre o Governo Regional e a Igreja sempre houve muita cooperação"
A COMECE debateu desafios económicos e geopolíticos que se colocam ao presente e ao futuro da União Europeia. Como preservar os valores fundadores do projeto comunitário neste tempo de mudanças e desafios inéditos?
Em primeiro lugar, há que sublinhar esta realidade da paz, que é muito importante, mas, por outro lado, perceber que a União Europeia está a viver um momento em que, se não houver transformação, perderá o seu papel de interveniente ativo na cena mundial. Os próprios protagonistas da cena mundial vão mudando e, não tenhamos dúvidas, se puderem deixar a Europa para trás, não vão esperar um segundo. A Europa precisa, em termos económicos e em termos políticos, de ser mais interveniente, de olhar para a realidade.
Agora, claramente, sempre com o seu ADN. Qual é? Primeiro, uma realidade que garante a paz. Segundo, uma realidade que garante o progresso. Terceiro, uma realidade que garante a paz e o progresso para os seus cidadãos, oferecendo-lhes aquilo que é uma vida minimamente digna, pelo menos para a grande maioria. Creio que este é o grande AND da Europa e isto não podemos perder.
A própria economia europeia necessita de dar grandes passos. A perceção que há é a de que se está numa certa estagnação, que não se foi capaz de avançar diante dos novos desafios da inteligência artificial, de todo este mundo digital, de todas as consequências que daí advêm.
Estamos na reta final desta conversa e a última pergunta tem a ver com o seu território diocesano. Antes das eleições regionais, na Madeira, falava de um certo cansaço no eleitorado, que até poderia representar um risco para a participação democrática. Tivemos as eleições: como é que vê o próximo ciclo político, que parece garantir uma maior estabilidade governamental?
Eu creio que é isso: esta participação, esta maior participação e esta votação foi precisamente no sentido de garantir estabilidade e, portanto, esperemos que esta estabilidade aconteça. A presença e o diálogo da Igreja na Diocese do Funchal é uma realidade, Entre o Governo Regional e a Igreja sempre houve muita cooperação, tenho a certeza que continuará a existir.
Mesmo que o Governo Regional tivesse mudado politicamente, tenho a certeza de que a cooperação continuaria a existir, mas não posso deixar de saudar esta garantia de quatro anos de tranquilidade política que permita responder às necessidades do povo madeirense e à realidade madeirense.