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Entrevista Renascença/Ecclesia

​Associação pede “discussão séria” sobre cuidados paliativos na campanha eleitoral

06 abr, 2025 - 09:30 • Henrique Cunha (Renascença) e Octávio Carmo (Agência Ecclesia)

No fim de semana em que se celebra o Jubileu dos Doentes e do Mundo da Saúde, é convidada da Renascença e da Agência Ecclesia a presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos. Catarina Pazes lembra que a lei prevê desde 2012 acesso para todos, mas hoje "ainda não temos essa garantia para a grande maioria das pessoas".

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A presidente da Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos (APCP) volta a criticar a aprovação da lei da eutanásia. Em entrevista à Renascença e à Agência Ecclesia, Catarina Pazes critica a "incapacidade de discutir o fim da vida e como se vive até ao fim".

“Só existem debates sobre como se morre, como é que eu quero morrer”, assinala a responsável, garantindo, por outro lado, que no plano dos cuidados existem muitas falhas que apontam para um final de vida associado "à perceção de grande sofrimento e angústia".

“Se não há apoio, não há suporte, não há ajuda, viver essa fase da vida deve ser mesmo horrível”, alerta.

A pouco mais de um mês de eleições legislativas, a presidente da APCP exige uma "discussão séria" na campanha eleitoral que se aproxima sobre "medidas urgentes" para o setor dos cuidados paliativos. Catarina Pazes afirma tratar-se de um assunto "premente para o SNS”, tanto mais que os profissionais do sector estão desiludidos porque a grande maioria das pessoas continua sem ter acesso em 2025 a uma lei que surgiu em 2012.

“Esta área dos cuidados paliativos não foi priorizada e ainda hoje temos equipas abaixo dos mínimos para prestarem bons cuidados”, desabafa.

Cerca de 70 por cento dos doentes não têm acesso em tempo útil a cuidados paliativos e Catarina Pazes alerta para o facto de termos uma esperança média de vida cada vez mais longa, com uma população cada vez mais envelhecida. A dirigente da APCP lembra que a OMS prevê que em 2060 “teremos o dobro das necessidades e “isto é um tsunami”.

"Trata-se de um investimento que precisa de acontecer a bem do futuro da saúde em Portugal”, enfatiza.

"Só existem debates sobre como se morre, como é que eu quero morrer. Morrer é o momento"

Neste fim de semana em que decorre no Vaticano o Jubileu dos Doentes e do Mundo da Saúde, a presidente da APCP retira algumas lições do momento delicado de saúde por que passou o Papa Francisco, e diz que “em muitos momentos, o Papa alertou-nos para reflexões essenciais, que têm a ver com a fragilidade e a vulnerabilidade”

Catarina Pazes revela que “a vivência de toda a situação do Santo Padre, para quem é paliativista, trouxe algumas reflexões” e conta que em muitos momentos pensou o que acabou por partilhar nas redes sociais: “Que não faltem ao Papa cuidados paliativos, independentemente do percurso que ele tenha e da possibilidade de reverter a situação."

Ainda recentemente, teve a oportunidade de voltar a alertar para o facto de mais de 70% dos doentes não terem acesso em tempo útil a cuidados paliativos e este valor que sobe para os 90% quando estamos a falar de crianças. Sente, de alguma forma, que anda a pregar no deserto?

Não me sinto a pregar no deserto porque não estou sozinha, não tenho essa sensação, porque são muitos profissionais que comigo lutam por melhores cuidados paliativos, por melhores condições para prestarem bons cuidados de saúde a quem tem sofrimento por causa de doenças graves ou incuráveis.

O que sentimos na Associação Portuguesa de Cuidados Paliativos é alguma desilusão porque foi em 2012 que surgiu a lei dos cuidados paliativos que garante o acesso a todos os portugueses a cuidados paliativos, independentemente do contexto, da idade, da tipologia de doença. Todos os portugueses que tenham uma situação de sofrimento grave por causa da sua doença terão acesso a cuidados, sejam eles a nível de internamento, a nível da comunidade, durante o percurso de doença em ambulatório... Em todos esses contextos. A lei surge em 2012 e estamos em 2025 e, infelizmente, ainda não temos essa garantia para a grande maioria das pessoas.

"A conversa sobre o fim da vida e sobre como se vive até ao fim é muito travada nos locais de debater"

Que explicações é que encontra para que não se evolua nesse sentido?

A explicação mais simples é que, verdadeiramente, eles não foram priorizados. Esta área de cuidados de saúde não foi priorizada verdadeiramente. Ela está na lei, existem vários documentos legais que até nos põem numa situação confortável. Em termos de evolução dos cuidados paliativos do ponto de vista legal, estamos numa situação confortável, mas, na prática, não foram dadas as condições nem foram priorizadas medidas que garantissem a constituição das equipas com os profissionais necessários, no número necessário, com a formação e as competências adequadas para prestarem cuidados de qualidade.

Ainda hoje temos equipas abaixo dos mínimos para prestarem bons cuidados e, portanto, estamos a defraudar as pessoas porque vão ao hospital e perguntam "mas aqui existe cuidados paliativos?" Sim, existe uma equipa, mas, depois, quando vão perguntar como funciona, percebem que, afinal, é só às segundas e às quartas ou só de manhã ou só tem um médico de vez em quando e isso não é dizer que temos uma equipa.

Nessa perspetiva, seria importante colocar o tema para a próxima campanha eleitoral?

Sem dúvida nenhuma. Muito recentemente, fomos ao parlamento, em janeiro, à comissão parlamentar da Saúde, precisamente para apelar aos deputados e chamar a atenção para um problema que é premente para o Serviço Nacional de Saúde. É absolutamente urgente e precisa de ser entendido por todos, porque é transversal, não é uma bandeira de ninguém, é transversal a todos os partidos. O apelo que fazemos é que seja um assunto transversal e que seja levado para a campanha com uma discussão séria sobre as medidas urgentes a propor no imediato.

"Associar os cuidados paliativos única e exclusivamente a uma fase mais avançada é redutor, é perigoso e é desinformação"

O facto de termos uma esperança média de vida cada vez mais longa e uma população também necessariamente cada vez mais envelhecida vai obrigar a procurar soluções neste campo?

A Organização Mundial da Saúde aponta para uma duplicação em muito pouco tempo. Em 2060, teremos o dobro das necessidades. Claro que são previsões, são estimativas, mas devem obrigar-nos a pensar. Isto é um tsunami. O número de pessoas mais velhas com o aumento do número de pessoas com doença grave, com doença crónica trará, certamente, muita angústia e muita necessidade de adequação de cuidados ao longo do percurso, com processos de tomada de decisão, com a necessidade de apoio para o doente, para a sua família, para o cuidador. E um apoio e um suporte ao longo do processo de doença.

Aí, entram as várias tipologias de cuidados paliativos, como eu estava a dizer no início, fará e traz uma diferença enorme no stress associado à doença, à vivência da doença, no stress associado à doença para o doente e para a família, no sofrimento associado. Nas situações de fim de vida, o stress associado às tomadas de decisão e os processos de luto trazem muito peso. Portanto, trata-se aqui de um investimento que precisa de acontecer a bem do futuro da saúde em Portugal.

Que soluções preconiza para se poder dar mais qualidade de vida a quem sofre? É precisa uma melhor articulação entre a rede de cuidados continuados e a rede de cuidados paliativos?

Esse é um dos pontos que apontamos como urgente. De facto, essa articulação é muito importante, necessária, e tem de ser vista como natural. Dentro dos cuidados continuados integrados, existem muitas tipologias de resposta, diferentes tipo de unidades e também existem equipas de cuidados continuados integrados na comunidade, que são equipas que se deslocam a casa. Todas estas tipologias, quer de internamento quer domiciliárias, estão a responder a doentes com necessidades paliativas. E precisam de ter uma articulação fácil com as equipas especializadas em cuidados paliativos.

"A lei [dos cuidados paliativos] surge em 2012 e estamos em 2025 e, infelizmente, ainda não temos essa garantia para a grande maioria das pessoas"

Ainda recentemente, ligando aqui várias questões, o Tribunal de Contas falava, no caso dos cuidados continuados, que essa rede estava muito aquém das metas. Nos hospitais, prolongam-se internamentos pelo facto de os doentes não nterem fora de ali acesso aos cuidados necessários. Há até a falta de perceção do benefício que teria para a comunidade em geral, poder desospitalizar os cuidados...

Essa situação, e essa perspetiva de desospitalizar os cuidados, de desospitalizar a vivência do final da vida, a vida até o fim, dando às pessoas o direito de escolher onde estar nessa fase, tem um impacto enorme para a pessoa e para os seus entes queridos, e tem um impacto enorme para o sistema.

São necessárias medidas que tragam essa humanização, que tragam a humanização dos cuidados às pessoas que estão numa situação de fim de vida. São medidas que se impõem do ponto de vista ético, do ponto de vista deontológico, da prestação de cuidados de saúde, e que o Estado deve garantir. E do ponto de vista financeiro e de sustentabilidade também. Porque as pessoas que estão a viver situações de doença mais avançada, quando não têm um percurso suportado, acompanhado - e quem nos está a ouvir provavelmente consegue identificar isto - muitas vezes recorrem a múltiplos recursos de saúde, porque está perdido, porque está ansioso, porque está angustiado, não sabe o que é que vem a seguir e não sabe como lidar com o que está a aparecer. E esses múltiplos recursos têm repercussões em custos, mas, infelizmente, não trazem benefício para a pessoa.

É essa situação que está a fazer com que o sistema esteja a ficar mesmo insustentável, porque a procura dos serviços de saúde está a aumentar por parte de pessoas que têm doenças crónicas, que têm doenças avançadas, porque são situações de pessoas mais velhas, com vários problemas de saúde, que precisam efetivamente de uma assistência adequada à sua situação - provavelmente, uma assistência diferente daquela que estão a ter. Mas nós, como não nos preparamos para isso e continuamos a não nos preparar para isso, continuamos a dar a resposta que a pessoa não necessita e que, infelizmente, se traduz, em muitas vezes, no agravamento do próprio sofrimento.

"A vivência de toda a situação do Santo Padre, para quem é paliativista, naturalmente que nos trouxe algumas reflexões"

Quando falamos de paliativos, falamos também da família e da forma como se lida com o luto. Qual é o papel dos especialistas neste campo?

O papel dos especialistas é um tópico muitíssimo importante. As equipas de cuidados paliativos são formadas por vários profissionais, por enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes sociais, terapeutas, fisioterapeutas, nutricionistas, etc. Mas todos nós tivemos uma formação que nos permite abordar as questões do luto e do suporte no luto, quer ao longo do processo de doença quer após o doente falecer. Os psicólogos que trabalham nestas equipas têm uma formação específica que lhes permite uma atenção ao doente e família no sentido do ajustamento à situação, o que lhes permite uma atenção e uma intervenção muito especializada na área dos cuidados paliativos.

Aquilo que defendemos é que, de facto, sejam dadas as condições às equipas, precisamente para que as que existem possam garantir aquilo que nós estamos aqui a apregoar. Porque quem nos ouve lá em casa, ou no carro, ou em qualquer local, provavelmente, já teve alguma experiência com cuidados paliativos e diz "mas eu não tive isto, eu não tive um psicólogo, eu não tive acesso a este apoio que esta pessoa está a referir-se. Porquê?"

Essa é uma das questões que eu queria colocar, porque o país prepara-se para ver uma lei de eutanásia regulamentada. O facto de tantas pessoas morrerem mal, em sofrimento, sem estes cuidados, sem equipas de apoio pode ter ajudado a uma perceção mais favorável na opinião pública relativamente à legalização da eutanásia?

Nós tivemos a oportunidade de expressar a opinião, enquanto associação. Parece-nos uma legislação absolutamente extemporânea e continua a sê-lo precisamente pela nossa incapacidade de discutir o fim da vida e como se vive até ao fim. Para vós, também deve ser fácil de entender que debates sobre a forma como se vive até ao fim não existem.

Só existem debates sobre como se morre, como é que eu quero morrer. Morrer é o momento. Agora, se a perceção que eu tenho do fim da vida e dos últimos tempos da vida é uma perceção de grande sofrimento, associada a tantas intervenções que trazem sofrimento e angústia, a tantos internamentos hospitalares, a tubos, medidas desproporcionadas, agressão, então eu, enquanto pessoa que pensa nestas coisas, penso assim: eu não quero viver isso, eu não quero sofrer no final da minha vida. Porque só quem está lá é que sabe o que é, mas nós imaginamos que é algo muito mau e então pensamos: "se não há apoio, não há suporte, não há ajuda... viver essa fase da vida deve ser mesmo horrível". Então, eu prefiro antecipar o fim. Sim, a perceção que existe é negativa, mas também não têm sido viáveis discussões, conversas sobre este assunto de forma aberta. A conversa sobre o fim da vida e sobre como se vive até ao fim, de facto, é muito travada nos locais de debate.

"Quando a morte é inevitável, não está na mão do médico decidir se deixa morrer ou não. Quando é inevitável, é inevitável"

Precisamente: a ideia de recorrer aos paliativos ainda choca muita gente. Isso mostra o preconceito que existe ligando os paliativos a uma morte iminente?

Mostra um desconhecimento. Eu trabalho numa equipa de cuidados paliativos, estamos a acompanhar doentes que estão em fases muito precoces da sua doença, a fazer tratamento dirigido, doentes que estão a trabalhar e que têm necessidade paliativas diferentes, porque têm sofrimento, angústias e incertezas, e dificuldade em falar com os seus filhos sobre a situação que precisa do apoio e do suporte de uma equipa de cuidados paliativos numa fase diferente daquela que é uma fase da doença avançada, em que a morte é inevitável, o fim da vida é inevitável, o agravamento da doença está a aproximar-se.

E é preciso planear toda essa fase de uma forma humanizada, ajustada àquilo que são as vontades do doente, ajustada àquilo que são as capacidades daquele familiar para prestar apoio, etc. Portanto, uma equipa de cuidados paliativos ajuda as pessoas a viver bem, independentemente da sua doença de base e da fase em que a doença esteja. Associar os cuidados paliativos única e exclusivamente a uma fase mais avançada é redutor, é perigoso e é desinformação para as pessoas. Infelizmente, ainda continua a ser essa a noção em muitos contextos.

No momento em que falamos, celebra-se no Vaticano o Jubileu dos Doentes e do Mundo da Saúde, que também olha para os profissionais deste setor, bastante recordados, aliás, na altura da pandemia. Não sei se depois dos cinco anos que passaram, foram devidamente reconhecidos por esse trabalho. Pergunto-lhe se o estado de saúde do Papa e a sua forma de estar chamam a atenção para a fragilidade e se é um testemunho necessário nos tempos que vivemos...

Sem dúvida que, em muitos momentos, o Papa Francisco nos alertou para reflexões essenciais que têm a ver com este percurso na fragilidade, percurso da vida em contexto de fragilidade, de vulnerabilidade. Que é humana, que faz parte de todos nós e que, tantas vezes, esquecemos. Faz-se de conta que isso não existe e, quando passamos pelo problema, como o Santo Padre está a passar, ou quando alguma pessoa muito próxima de nós passa, vemos que todas essas mensagens foram muito essenciais.

A vivência de toda a situação do Santo Padre, para quem é paliativista, naturalmente que nos trouxe algumas reflexões. E aquilo que eu pensei em muitos momentos, e até tive a oportunidade de publicar numa página de uma rede social, foi: "Que não faltem ao Papa cuidados paliativos, independentemente do percurso que ele tenha e da possibilidade de reverter a situação."

"Nas situações de fim de vida, o stress associado às tomadas de decisão e os processos de luto trazem muito peso"

Independentemente do tempo de vida que lhe resta, não é?...

Exatamente. Independentemente do tempo e independentemente da possibilidade de reverter a situação, porque estávamos perante um alto nível de incerteza. O prognóstico reservado que todos os dias ouvíamos nas notícias tinha que ver com a incerteza, com a possibilidade de as coisas correrem mal, com a possibilidade das coisas evoluírem para o fim da vida. Nessa perspetiva da incerteza, é importante, por um lado, percebermos o que é possível fazer para evitar a morte e promover tudo aquilo que é possível para manter a vida - e foi isso que aconteceu. Mas, ao mesmo tempo, não se pode esquecer aquilo que são as preocupações com a dignidade, o conforto, o humanismo, o ser ele sempre.

Essas duas dimensões entrosadas nos cuidados são essenciais e o que nós desejamos é que toda esta situação sirva também para refletirmos sobre isso e para que percebamos que ela não está nas nossas mãos. Quando a morte é inevitável, não está na mão do médico decidir se deixa morrer ou não. Quando é inevitável, é inevitável. O que está na mão do médico é decidir se o doente tem ou não acesso a alívio do sofrimento e se vive aquele tempo com o mínimo sofrimento possível.

Aquilo que aconteceu com o Papa foi outra coisa. Havia potencial de ser evitável, havia potencial de se ver a situação revertida e o que aconteceu foi isso. Foram instituídas todas as medidas que podiam reverter a situação, porque era potencialmente possível. Agora, a gestão da incerteza é algo que nos deve preocupar e nos deve ocupar enquanto profissionais de saúde, porque é um momento de grande, grande fragilidade, de vulnerabilidade, de sofrimento para o doente e para quem o ama, para quem lhe é próximo.

E a atenção a todos os pormenores nessa fase faz toda a diferença. Quer as coisas corram pelo melhor, porque em algum momento vão correr de outra maneira, porque é assim, porque ser-se humano, implica isso; quer as coisas evoluam para a morte. E que seja sempre percecionado que fizemos tudo o que era adequado, que fizemos tudo o que era correto e que a pessoa teve uma vida digna até ao fim.

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