16 abr, 2025 - 06:00 • Ângela Roque , Henrique Cunha
O presidente da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP) , D. José Ornelas, está "intranquilo" com o atual contexto político e económico internacional e considera que têm de se levar muito a sério as palavras e os atos do novo Presidente dos Estados Unidos.
"Quando ouvimos dizer "America First" [América primeiro], é a mesma expressão de '"Deutschland über alles" [a Alemanha acima de tudo]. É a mesma coisa: os outros todos passam para segundo plano e só têm lugar no mundo depois de nós", diz o prelado, numa entrevista concedida à Renascença.
Para o também bispo de Leiria-Fátima, "a teoria que está por trás disto" não o deixa tranquilo, pelo que, nesta altura, "não vale adormecer, não se pode adormecer neste momento" de modo a que "tenhamos esperança e sejamos fundamentadores de esperança".
D. José Ornelas fala na necessidade de "resistir" e num ano Santo que a Igreja católica dedica à esperança, defende que é preciso lutar pela paz e pela dignidade de todas as pessoas, porque políticas como as que Donald Trump está a promover só semeiam injustiças.
Face ao atual contexto internacional difícil, e com as desigualdades a agravarem-se no país, como mostra o recente estudo da Cáritas, D. José Ornelas considera prioritário ter um novo governo. Apela, por isso, a que "ninguém se abstenha" e a que os partidos ponham à frente o interesse nacional.
Nesta entrevista publicada na véspera do Tríduo Pascal, o presidente da CEP e bispo de Leiria-Fátima reflete também sobre a atual fase pós-sinodal que se vive na Igreja, lembrando que as mudanças não dependem só da hierarquia, mas de todos os fiéis.
Sobre a questão dos abusos na Igreja, D. José Ornelas admite que o processo para a compensação financeira das vítimas está a ser demorado, mas é o tempo necessário "para que se possa fazer bem as coisas".
"Quando ouvimos dizer "America First", é a mesma expressão de '"Deutschland über alles". É a mesma coisa: os outros todos passam para segundo plano e só têm lugar no mundo depois de nós"
O Papa Francisco aprovou o caminho que levará a uma assembleia eclesial, daqui a três anos, para consolidar o processo sinodal. Podemos dizer que este é um processo imparável? Já está em velocidade de cruzeiro?
Quer ser uma etapa, já prevista, no último regulamento do Sínodo. Até agora, depois da discussão das propostas, o Papa fazia um documento pós-sinodal, uma exortação. Isso tem sido o mais comum, mas o Papa, viu-se logo na reação às propostas que foram aprovadas na segunda sessão do Sínodo [em outubro de 2024] tinha outra ideia. Primeiro, aceitou o documento, ele esteve presente em quase todas as sessões fundamentais em que se leram e aprovaram documentos ou partes do documento. Depois, esteve nas votações e, ao chegar ao fim, disse "declaro que isto é Magistério da Igreja e entrego à Igreja".
É um sinal muito importante essa valorização que o Papa deu às conclusões?
Muito importante, dá outra interpretação àquilo que significa o Sínodo. Porque o Sínodo não é um Concílio. Um Concílio, em si mesmo, dá doutrina para a Igreja. Nos Sínodos, a doutrina era feita tradicionalmente pela exortação pós-sinodal. O Papa está a dar uma outra consistência ao Sínodo, uma consistência nova no pensar e ordenar a Igreja. O Papa entrega isto - o documento final - à Igreja porque não é simplesmente um documento de estudo, magisterial, mas é um documento prático.
O tom deste Sínodo foi sempre o de procurar caminhos novos para a Igreja. Por isso, falou-se de processo sinodal, de caminho sinodal, de sinodalidade e de corresponsabilidade dentro da Igreja. E não serve de nada um documento se for simplesmente para citar como doutrina da Igreja. Isto foi a primeira coisa que o Papa fez: dizer que isto é doutrina da Igreja, mas que tem de ser absorvida e inserida na própria vida da Igreja, porque, senão, pode acontecer como aconteceu com tantos aspetos do Concílio Vaticano II, que nunca chegaram a ser propriamente implementados. É isso que se quer evitar para que haja um acompanhamento da forma como a Igreja está a receber a doutrina do Sínodo e a está a implementar.
"Para que nós tenhamos esperança e sejamos fundamentadores de esperança, é preciso que estejamos de pé. Não vale adormecer, não se pode adormecer neste momento"
Neste processo sinodal, há duas questões que, de alguma forma, têm despertado mais interesse e opiniões - a ordenação de mulheres e a possibilidade de os padres casarem. São possibilidades que continuam a ser estudadas. Acredita que acabarão por avançar ou é prematuro?
Essas questões concretas nunca foram tiradas de cima da mesa do Sínodo, também nas discussões. Só que não era o lugar, este Sínodo, para as discutir. O que o Sínodo fez foi criar um novo contexto em que essas discussões têm de assumidas.
E este caminho de três anos pode levar a que se discuta melhor estas questões?
Pode ser num outro sínodo, mas com esse tema. Porque, mesmo agora, nas dez comissões pós-sinodais que estão já constituídas e estão a trabalhar. Foi alargado até ao fim do ano, provavelmente para entrega de todas, algumas vão manter se até outubro, mas outras serão mais tarde, eu pertenço a uma dessas. Mas, isso significa que temas concretos de sinodalidade como esses, mesmo a questão do diaconado feminino e, eventualmente, ordenações, nada disso foi tirado de cima da mesa, só que tem de ser objeto de uma reflexão nova dentro deste modo de ser Igreja que este Sínodo instituiu, em que há corresponsabilidade dos fiéis e a escuta da Igreja.
Temos uma nova metodologia para tratar esses temas, não foram escamoteados nem esquecidos, criou-se foi um contexto em que podem ser corretamente refletidos, sondados e analisados. Porque qualquer afirmação que este Sínodo tivesse feito sobre este e outros assuntos seria um pouco temerário sem ter havido um estudo muito claro e um contexto sinodal de reflexão.
Mas não se pode estar a estudar constantemente, não é?
Por isso mesmo. Estes grupos também não vão ser a última etapa, são só um lançamento das questões e do contexto em que elas podem, de facto, ser tratadas.
"Isto não é uma ordem, estamos a acabar com a ordem mundial e com a capacidade de todos"
Este novo modo de ser Igreja já é visível em Portugal? O processo sinodal já provocou mudanças? Como é que isto tudo correu?
O processo do Sínodo, como tal, desde a participação que se foi fazendo para construir uma Igreja sinodal, fez surgir grupos de pessoas que despertaram para isso e para uma nova capacidade e vontade de expressão dentro da Igreja.
A corresponsabilidade não estava completamente fora da nossa Igreja, onde funcionavam já os conselhos paroquiais, campos como a catequese, os jovens, onde a maioria são leigos que já estão mais envolvidos nisto, como na Jornada Mundial da Juventude. Acho que há muito a fazer também aí, mas não estamos completamente ausentes desse mundo, e é evidente que há passos muito importantes a dar.
Estão a ser pensados, nomeadamente pela Conferência Episcopal?
Primeiro, na tomada de consciência. É preciso ter em conta que não foi a maioria dos cristãos que participou no processo sinodal.
O envolvimento das comunidades é muito importante, agora?
Mas houve um grupo de pessoas, pelo menos da minha experiência, que começou na diocese de Setúbal e continuou na de Leiria-Fátima, na segunda parte. Mas isto significa, também, que muitas destas pessoas, que sobretudo já eram os mais empenhados na Igreja, ganharam outra consciência e outra vontade, e participam de outro modo.
E isso é positivo...
Muito positivo.
Ou seja, não se pode esperar que dependa apenas da hierarquia?
Não, não! Aliás, de outro ponto de vista, também a própria equipa sinodal a nível nacional, da Conferência Episcopal Portuguesa, que reuniu as equipas já compostas por pessoas, a maioria leigos, dentro das dioceses, e esta equipa sinodal a nível nacional, são fruto disso. E são uma forma de dizer, pensar, refletir e propor diferente, que, certamente, vai marcar o futuro da nossa Igreja.
Mais: depois do Sínodo, fizemos um encontro sinodal com representantes de todas as dioceses - mais de 150 -, em Fátima, e foi uma festa de pessoas que querem, de facto, estar presentes. E nas mesas também a nível sinodal, como se fez no Sínodo, estavam bispos, padres, religiosos, religiosas, leigos, de movimentos e de paróquias, etc. Foi a primeira que se fez. A segunda vai ter lugar no mês de Junho e vai ser, de novo, uma assembleia destas, para retomar as propostas da primeira e ver como é que a nível do país, da Igreja em Portugal, que medidas mais importantes são para ter em conta e são para introduzir na prática da Igreja. Porque é isto que este modelo quer dizer.
"Eu não estou a propor um conflito com a América, mas acho que é importante que a mentalidade e a cultura deste mundo e que a gente se levante"
Aquilo que, sobretudo a Igreja Católica, enfrenta no nosso país - que tem a ver com o acolhimento e integração de comunidades migrantes, algumas delas católicas, mas muitas outras que professam outras religiões - é um desafio, um problema ou uma oportunidade?
É tudo isso. É um problema, porque se não resolvermos bem, vai ser mesmo problemático e, sobretudo, porque essas pessoas que chegam trazem problemas por resolver e isso tem consequências a nível do país, a nível público, político, social, económico, sanitário, etc. Tudo isso são questões novas que se põem. O nosso país ter recebido 10% de população a mais, que já se nota também nos Census, é muito claro...
Sim, os últimos números indicam isso...
E que estão presentes, particularmente nas nossas cidades. Mas invadiram o país inteiro. Não entro agora na questão técnica de tudo isto, mas sem dúvida que também para o país inteiro são oportunidades, são um colmatar de necessidades para ir ao encontro da nossa pobreza em termos de natalidade, são oportunidades novas de abertura.
E muitas delas precisam de ser protegidas...
Temos de ter um sistema de justiça, não é proteger porque são uns coitadinhos. É como aconteceu com os nossos emigrantes. Eram pessoas super capazes e foi precisamente porque tinham coragem de vida e de inteligência para isso que se adaptaram a novas culturas. Nós temos de perceber que estas pessoas que vêm, que estão a entrar no nosso país são desta natureza: pessoas que têm coragem, sentem necessidade. E já não são só pessoas de baixa cultura que chegam.
"Se queremos uma nova ordem e se queremos ter esperança, temos de lutar por ela. Lutar no bom sentido: lutar pela paz, pela justiça, lutar pelo direito e pela dignidade de todas as pessoas"
Mais à frente, vamos falar da crise política e das eleições, mas este tema da imigração deveria ser alvo de atenção particular por parte de todos os partidos políticos?
Tem de ser dos partidos e tem de ser de toda a sociedade. E quem não tiver isso em conta está a perder oportunidades, está a criar problemas para o futuro, porque vamos ter um ricochete de toda esta problemática.
Para nós, Igreja, é importantíssimo. Nós ficamos neste cantinho da Europa, do ponto de vista religioso, muito à sombra da Igreja Católica, e isso não é um mal: é a nossa história e a nossa identidade. Mas, ao contrário daquilo que se passou nos outros países da Europa, particularmente no Norte da Europa, o diálogo ecuménico entre diversas igrejas passou-nos muito ao lado. E essa riqueza do diálogo ecuménico, de conviver com aquele que é diferente, mas que partilha grande parte da minha fé é muito importante, senão podemos cair numa autorreferencialidade muito grande. Há que dizer que a Igreja Católica é a Igreja que nós somos e pretende ser casa para todos, mas as outras igrejas irmãs não podem ser deixadas fora. É juntos que somos a Igreja de Cristo, portanto isto é importante para nós. Depois, é preciso também ver as outras tradições religiosas que chegam e que eram, no contexto nacional, raras. Temos de encontrar caminhos de viver esta multiplicidade e multiculturalidade em termos religiosos.
E isso está a acontecer?
Isso está a acontecer, e cada vez mais. Se não encontrarmos uma forma de diálogo para construirmos um mundo diferente, integrando todas estas pessoas, onde vivamos em paz e procuremos, cada um com a riqueza religiosa que traz, contribuir para o bem deste país, vamos ter confrontação e conflitualidade. E já vimos bem o que isso dá por aí fora...
"Eu peço muito a Deus que ele [o Papa] esteja capaz e com vontade e capacidade de continuar a prestar este serviço à Igreja"
Os cristãos acompanharam, e acompanham, com particular preocupação o momento de fragilidade do Papa Francisco, nomeadamente o seu internamento. Houve quem usasse essa fragilidade para pôr em causa o próprio processo sinodal, por exemplo. A forma como o Papa tem vivido a doença, o sofrimento, a fragilidade tem sido um desafio ao tempo atual, em que somos dominados pela pressa, pela cultura do descarte e pelo achar que se controla tudo?
Isto tem sido muito refletido, desde o tempo de João Paulo II. Todos nos recordamos como se chegou a um tempo de fragilidade muito grande. A própria consciência eclesial desenvolveu-se e encontrou na expressão do Papa Bento XVI, na sua atitude [a resignação] uma ponderação que é muito útil para a Igreja: dizer "até que ponto eu posso considerar estar ainda com as forças necessárias para poder estar à frente da Igreja" e "não seria melhor que seja outro". Esta foi a atitude do Papa Bento XVI, ao dizer "a Igreja precisa de outra pessoa, que eu já não estou em condições" e retirou-se. E ser um homem com a capacidade teológica de Bento XVI a fazer isto foi para a Igreja algo de muito bom. Não é uma situação de ter uma pessoa ali, uma pessoa sacra, mas é um serviço que se faz à Igreja e que não é nenhuma traição, como alguns consideraram, o deixar o lugar para que outro continue este serviço. O Papa Francisco está a tentar equilibrar estas duas coisas.
No atual contexto, faz sentido falar-se também da possibilidade de resignação do Papa Francisco?
É evidente que o Papa Francisco diz que esse é sempre um ponto que está em cima da mesa. É natural. Não tenho nenhuma informação privilegiada sobre isso, mas é natural que qualquer pessoa de bom senso e com sentido de Igreja pense nisso. É natural que isso tenha passado pela cabeça do Papa. Agora, só ele é que pode decidir isso, saber se chega um momento em que já não está capaz. Eu peço muito a Deus que ele esteja capaz e com vontade e capacidade de continuar a prestar este serviço à Igreja.
Este caminho que se fez, mesmo este Ano Santo que estamos a viver, este abrir perspetivas à Igreja , que será para quem vier a seguir a ele... Não sei, não faço prognósticos, digo só aquilo que tenho ouvido dele. Quando estava muito mal do joelho, dizia que não governava a Igreja com o joelho, que achava que tinha capacidade para isso. Durante a própria hospitalização, ele tomou decisões importantes para a Igreja, como a da continuação do Sínodo. Fê-lo em perfeita consciência e acho que a Igreja tem confiança no Papa sobre isso. E muita estima e muito carinho pelo trabalho que está a fazer.
"Tem de se encontrar capacidade de negociar para encontrar denominadores comuns que possam servir o país"
A Igreja vive um jubileu dedicado à esperança. É possível termos esperança num mundo marcado por tantos conflitos e ameaças?
Eu acho que não só é possível como é absolutamente necessário. E é sobretudo em momentos destes que é necessário ter esperança. Só que não é uma esperança sentada, à espera que as coisas cheguem e aconteçam. É preciso ajudar a acontecer e isso depende de todos nós.
Agora, o mundo que temos, particularmente as convulsões dos últimos anos em termos bélicos e agora em termos económicos e em termos políticos, são muito, muito sérias.
E aí há duas coisas que me parecem importantes: para que nós tenhamos esperança e sejamos fundamentadores de esperança, é preciso que estejamos de pé. Não vale adormecer, não se pode adormecer neste momento.
Quando ouvimos dizer "America First" [América primeiro], é a mesma expressão de '"Deutschland über alles" [a Alemanha acima de tudo]. É a mesma coisa, os outros todos passam para segundo plano e só têm lugar no mundo depois de nós. É dizer "somos nós que ditamos o mundo".
Está já a fazer referência à atitude da nova administração dos Estados Unidos...
Claro.
Está-se a criar uma espécie de nova ordem mundial...
Isto não é uma ordem, estamos a acabar com a ordem mundial e com a capacidade de todos. É que, depois, o que vem a seguir, e que é muito perigoso, é a questão de dizer "a mim serve-me a Gronelândia, a mim serve-me o Canadá". Isto não pode ser! Isto é o Lebensraum, o espaço vital do Hitler [conceito que determina que toda a sociedade, num determinado grau de desenvolvimento, deve conquistar territórios onde as pessoas são menos desenvolvidas].
Isto tem de ser tomado a sério. Eu não estou a propor um conflito com a América, mas acho que é importante que a mentalidade e a cultura deste mundo e que a gente se levante.
É preciso uma Europa que enfrente a administração Trump?
Não é enfrentar, é procurar juntos a paz, é procurar juntos caminhos, mas nunca ceder à injustiça, nunca ceder ao autoritarismo, nunca ceder àquilo que põe em causa o direito e a justiça. Porque, depois, quem vai pagar isto é o mundo inteiro e particularmente os mais frágeis.
Então, esta nova ameaça é aquilo que estava a dizer: uma espécie de novo nazismo?
A teoria que está por trás disto não me deixa nada tranquilo. Aliás, isso tem saído em tantas análises deste tipo.
Se nós queremos uma nova ordem e se queremos ter esperança, temos de lutar por ela. Lutar no bom sentido: lutar pela paz, pela justiça, lutar pelo direito e pela dignidade de todas as pessoas.
"Um cristão nunca pode desligar-se do sentir político porque isso é deixar a esperança na mão dos outros"
E é possível fazer isso sem haver uma nova corrida ao armamento, como está a acontecer?
O Papa tem dito que não é as armas... as armas vão certamente entrar quando a injustiça campeia. Porque o que esta mentalidade propõe é um mundo de rebeldes ou de escravos. Ou rebeldes que se levantam contra a injustiça ou escravos que se adaptam. Nenhum desses constrói uma humanidade boa. Ou temos um sistema de violência ou temos um sistema de despersonalização.
É agora que temos de criar uma cultura em que, realmente, a humanidade, o ser humano esteja no centro das coisas, com a sua dignidade e com a sua esperança. É o tal motivo de esperança. Nós estamos a matar a esperança a muita gente.
Mas, a realidade está a apontar para outro caminho, porque temos a Europa a fazer um forte investimento em segurança. Fala-se de 800 mil milhões para armamento e a pergunta que muitos colocam é se uma parte substancial desses montantes não esá a ser retirada de outras áreas muito importantes para a própria Europa, que têm a ver com a coesão social e com o combate à exclusão...
Se forem uma alternativa, acho que não pode ser.... O problema é que nós podemos chegar a uma situação, e todos têm de ter em conta isso, em que se chega realmente a uma confrontação bélica. Todos vamos pagar, e tremendamente, as consequências disso. Estamos a ver na Ucrânia, na Faixa de Gaza, no Sudão, no Iémen e em tantos outros lugares.
É preciso encontrar caminhos que levem à paz, mas que possam ser meios que não nos deixem acordar de manhã quando já não há remédio, quando situações destas chegassem a tomar lugar.
"Esperança não quer dizer destacar-se da realidade"
É inevitável falarmos dos abusos na Igreja em Portugal. O processo entrou numa nova fase, com o fim do prazo para os pedidos de compensação financeira. Contudo, só em Setembro é que as comissões de instrução deverão ter todas as 77 situações avaliadas, o que vai prolongar ainda mais a definição do valor a pagar. Pensando nas vítimas, o processo não se está a prolongar em demasia?
É pensando nas vítimas que o tempo tem de ser dado, para que se possam fazer bem as coisas. Podíamos multiplicar equipas e íamos ter uma desconexão de resultados, de ponderações, etc.
Acho que o programa foi bem delineado, está a ser implementado. E possível que até esteja pronto antes de setembro, mas não é isso que está em causa. É preferível ter algum tempo mais, mas ter o tempo necessário para que as pessoas tenham possibilidade de expor, de encontrar quem estuda os casos. E eles estão a fazer um trabalho que ocupa muitas, muitas horas, mas que acho que é necessário para que se possa chegar a uma ponderação de escuta. Não se trata simplesmente de uma questão de fixação de montantes. Trata-se, sobretudo, de perceber e de ter em conta as pessoas como são.
Mas está mais próxima a revelação de uma data para atribuição dos montantes e quando?...
A ideia é que até ao fim do ano tudo isto, esta fase deste processo esteja resolvida.
A definição do valor é uma coisa que as pessoas querem saber...
Será... O ritmo da sucessão das diversas intervenções é necessário para que se tenham também ponderações comuns e equilibradas sobre cada caso.
O fundo que vai servir para fazer os pagamentos já começou a ser constituído?
Esse fundo vai ser feito. Como dissemos, todas as dioceses e institutos religiosos estão empenhados nisto e a ponderação sobre a forma de constituir o fundo será pensada de acordo com as possibilidades, dos casos que houver e de tudo aquilo que se tiver de empenhar para isso. Agora, o que interessa é o seguinte: esta vontade do fundo é para que a ninguém seja negado este contributo, que é mais do que simplesmente uma questão económica, é uma questão de reconhecimento do mal que foi feito...
Mesmo para aqueles que agora venham a fazer a sua denúncia, depois de terminado o prazo?
Isso está desde logo dito. Esta fase do processo vai estar concluída, espero, até ao fim deste ano, mas a questão de outros que possam acontecer, já temos critérios. Serão da mesma ordem. Só que os casos que apareçam e que sejam casos julgados e com as novas normas - novas, com alguns anos -, é evidente que todos os casos novos que apareçam serão também reportados às autoridades civis. Aliás, muitas vezes, contemporaneamente, ou mesmo antes, as autoridades civis já se ocuparam desses casos...
De todos os casos que chegaram à Igreja, qual é o ponto de situação? Não era importante tornar público, de forma clara o que aconteceu aos processos dos abusadores?
Os processos que estão em causa, alguns deles, estão ainda em ponderação. A maioria deles são casos de pessoas já falecidas, em relação aos abusadores. Portanto, o que podemos dizer é a finalização, em termos deste ir ao encontro, com uma reparação que ajude à recuperação das próprias pessoas.
"Temos de perceber que estas pessoas que vêm, que estão a entrar no nosso país são desta natureza: pessoas que têm coragem"
Vamos falar agora da situação económica e social e da crise política que estamos a viver no país, começando pelo mais recente estudo da Cáritas Portuguesa. Esse trabalho alerta para o elevado número de situações de pobreza e de privação extrema e de exclusão social. Choca-o perceber que, 51 anos depois do 25 de Abril, o país ainda não tenha resolvido problemas que são estruturais?
Não é algo que a gente tenha perdido de vista. O mal seria que nos habituássemos a isso.
A Igreja em particular, e as suas instituições sociais, têm sido uma voz muito constante nestes alertas...
E é isso que eu digo. Chegar a isto significa que não podemos adormecer sobre estas realidades. Não nos podemos habituar a que seja normal que as pessoas vivam em situações assim, que não tenham casa. É hoje um dos grandes problemas, que sabemos que não é de fácil solução, mas é preciso não nos habituarmos a coisas destas. É preciso encontrar caminhos e esta informação é fundamental para isso. Mas, depois, é preciso atitude concreta.
E isso compete à política?
Compete à política, mas também aos cidadãos. Os cidadãos têm capacidade de intervir. Olhe, estou a ver, por exemplo, pessoas que, mesmo ao nível dos nossos centros sociais e paroquiais - não digo neste sentido, que é muito complicado, de arranjar casas, mas em termos de condições novas, dos centros sociais, paroquiais, para o acolhimento de crianças e de pessoas em dificuldade, acompanhar de pessoas isoladas, etc.
Outra coisa que é importante é que as muitas destas instituições que são da Igreja estão em parceria e articulação com outras. Isso faz-nos falta: estarmos em articulação. O trabalho que faz a polícia, por exemplo, no interior do país, para pessoas que vivem sozinhas e isoladas, mesmo no centro das grandes cidades. Estas instituições são cruciais, mas, ao mesmo tempo, é necessário que trabalhemos juntos.
Não vejo que isto seja uma coisa que possa ser resolvida de um momento para outro, porque quando se acaba um problema destes surgem outros, em ligação com imigrantes, com o envelhecimento da população, etc. É preciso é que juntos procuremos soluções. Nestes últimos tempos, por exemplo, por causa do PRR e das implicações que tem, quantas coisas que estão a surgir neste momento, que para parte destes setores vão dar um contributo muito significativo. Isto por todo o país, digo da minha Diocese, mas de tantos outros locais.
"Há que dizer que a Igreja católica é a Igreja que nós somos e pretende ser casa para todos, mas as outras igrejas irmãs não podem ser deixadas fora"
Falou da crise da habitação, a população em situação de sem-abrigo também tem aumentado. Neste cenário de grande dificuldade, sobretudo para essas populações vulneráveis, o país vive novamente uma crise política. Em sua opinião, qual deve ser a prioridade neste momento?
A prioridade, antes de mais, é encontrar o novo governo, uma vez que este caiu...
Mas é preciso uma solução estável...
Sim, mas a nossa estabilidade... Temos visto que há estabilidades que são contratualizadas. Numa época de maior dispersão pelos partidos, acho que é possível, sobretudo, dar prioridade aos interesses do país e o que não é possível fazer totalmente - cada partido tem o seu programa eleitoral, o que é mais do que justo e necessário para o sistema democrático. Depois tem de se encontrar capacidade de negociar para encontrar denominadores comuns que possam servir o país neste momento, e com realismo, para fazê-lo durar.
As sondagens apontam para resultados idênticos aos de há um ano, com grande instabilidade. Que conselho ou apelo faria?
O conselho que neste momento me parece fundamental é dizer que ninguém se abstenha. Vamos votar. Porque a única credibilidade que pode ter, depois, qualquer opinião que nós demos é "eu colaborei, não fiquei sentado a ver o que é que os outros decidiam. Eu colaborei com o meu voto".
Isto é aquilo que nós dizemos sempre, e é a tal coisa de saber criar esperança: em democracia, o momento do voto é o momento de esperança. Cada um respeitando todo o leque de opções que temos, mas é importante sobretudo participar, e participar-se em consciência e cada eleitor pensar no bem do país e não simplesmente naquilo que sempre foi a minha maneira de votar. Pensar no que é que o país hoje precisa.
E nesse sentido também um maior envolvimento dos cristãos na política...
Um cristão nunca pode desligar-se do sentir político, porque isso é deixar a esperança na mão dos outros. E não é só no momento do voto que eu estou presente, estou presente quando é preciso dar opinião. Há tanta ocasião para participar na vida pública de instituições concretas... Há gente que é mais dada não a grandes discussões, mas sobretudo a dizer "eu estou cá, eu colaboro na minha comunidade, na minha Igreja, colaboro com o meu tempo, as minhas ideias, a minha criatividade".
Não podemos deixar isso só da mão de profissionais, mas os profissionais têm de sentir que por detrás tem gente que tem espírito crítico, que é capaz de colaborar e que vai exprimir com voto, mas vai exprimir também com opinião ao longo de uma legislatura, o quer que seja, para que possamos ter um país mais ativo, onde também aqueles que são eleitos possam, por um lado, sentir o respaldo daqueles que os apoiam, mas possam também sentir o desafio de gente que criticamente está atenta ao que se passa e que não deixa passar a ocasião.
"Nós ficamos neste cantinho da Europa, do ponto de vista religioso, muito à sombra da Igreja Católica (…) o diálogo ecuménico passou-nos muito ao lado. E essa riqueza (…) de conviver com aquele que é diferente, mas que partilha grande parte da minha fé é muito importante, senão podemos cair numa autorreferencialidade muito grande"
Vamos fechar como começámos, com uma referência à Páscoa, que, este ano, os cristãos de todas as denominações celebram na mesma data, 20 de Abril. Que mensagem deixa para para esta Páscoa?
Olhe, com a palavra que tem estado muito presente neste nosso diálogo, que é a esperança. Esperança não quer dizer destacar-se da realidade. A Páscoa é a história, antes de mais, de um homem, Filho de Deus, que até aceita morrer no meio de toda esta conflitualidade sem sentido, que não elimina nem a dificuldade, nem o sofrimento, nem a morte, mas passa através de tudo isso porque há um futuro maior que é possível ter. A esperança é precisamente isso. E a esperança de Jesus foi a esperança de todos aqueles que criaram um mundo novo: Martin Luther King, Mahatma Gandhi e um profeta, acho eu, dos nossos tempos, como Nelson Mandela, que tinha tudo para ser um homem triturado pelo sofrimento, abandonado de qualquer sonho, ou então sair daí com recriminações e uma grande raiva contra aqueles que o puseram 27 anos na cadeia sem razão nenhuma, e no entanto é uma homem sai dizendo "é possível um mundo novo", "apesar disto tudo acho que é possível sonhar". E sonhar acordado e sonhar de pé, num mundo onde todos nos empenhemos para sonhar, mas também para realizar o sonho - aquilo que dissemos do Papa e do Sínodo: não basta ter boas ideias, a uma certa altura é preciso pôr esses sonhos a caminharem neste mundo. Esse é o sentido que eu vejo para a Páscoa.