Siga-nos no Whatsapp
A+ / A-

Entrevista Renascença

Ditadura do Instagram? Hoje a poesia “tem de caber num quadrado"

15 jan, 2025 - 14:50 • Maria João Costa

“Mais uma desilusão” é o livro de estreia de poesia de Valério Romão. O autor escreve um longo poema de quase 60 páginas. Nesta “anti epopeia”, como lhe chama, o autor traça um retrato do país da década de 1980 mergulhando nas memórias de infância e adolescência.

A+ / A-

Valério Romão já escrevia “muita poesia”, mas confessa que não achava que tivesse um livro. No entanto, desta vez, sentiu que estava a construir um livro para ser “publicável”. “Mais uma Desilusão” (ed. Abysmo) é o seu primeiro livro de poesia.

São quase 60 páginas de uma escrita intensa, de um longo poema, em que o autor conhecido pela sua trilogia “Paternidades Falhadas” explora as suas memórias de infância e adolescência.

Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, o autor que nasceu em França em 1974 e viveu parte da infância em Tavira, no sotavento algarvio explica que o livro “é um bocado uma viagem pela infância e adolescência de quem cresceu fora de Lisboa, mas sentiu de alguma forma o pulsar do país

O Portugal de então, das décadas de 1980 e 1990, era um país onde, diz Valério Romão “as notícias ainda vinham pela televisão e pelos jornais” e que entrava na União Europeia, “tendo saído há muito pouco tempo da ditadura do Estado Novo”.

É desta “coisa particular, de estar entre dois mundos” que Valério Romão fala num livro poema que é nas suas palavras uma “anti epopeia”. Questionado até que ponto estamos perante autoficção, o poeta aponta que “será um espelho relativamente distorcido pela memória e pelo que a imaginação vai fazendo à memória para a completar”.

“Mais uma desilusão” é um livro que tem um ritmo de quase enxurrada de palavras e imagens, onde a critica fina surge embrulhada pela poesia. Quando perguntamos a Valério Romão sobre o seu processo de escrita, o autor compara-o ao da realização de um filme.

“Podemos dizer que foi sendo filmado, sem grande preocupação com o resultado final. Depois houve uma parte de montagem e de corte, em que, aí sim, teve-se de fazer algumas costuras que eu esperei que não ficassem demasiado visíveis”.

O livro que transgride as fronteiras do convencional no que toca à forma da poesia leva o leitor também a olhar o país do presente. “Uma identidade que sobrevive mal a qualquer tipo de análise”, aponta Valério Romão que sentiu que havia pouca coisa escrita sobre aquelas duas décadas que o marcaram.

Acho que não havia nada que incidisse sobre aqueles anos daquela forma, sobretudo sobre estes anos 1980 e 1990. São coisas que eu tinha para dizer, que depois vão ao encontro de quem quiser lê-las”.

Valério Romão conta ao Ensaio Geral que este livro é “uma espécie de revisitação”. Escrito “no verão”, o grande poema olha também para o que nos foi “acontecendo nos últimos anos, a pandemia, a guerra na Ucrânia, o aquecimento global”.

“É inevitável não pensarmos, se aos 16 ou aos 20 anos teríamos antecipado algum destes fenómenos, ou seja, o ponto onde nos encontramos agora era o ponto em que achávamos que íamos estar quando tínhamos 16 anos? Claramente que não”, aponta.

O autor reconhece que “às vezes há uma perspetiva mais saudosista, ou nostálgica de um estado de coisas imaginado, e de um futuro que não chegou a ser”. Interrogamos por isso Valério Romão sobre esse futuro imaginado e o presente atual com “o turismo de manada” de que fala no livro.

“Se há algumas vantagens que advieram desta globalização, e da nossa entrada para a União Europeia, foi o facto de termos ficado marginalmente mais remediados. Temos mais dinheiro, temos mais literacia, temos mais acesso a tudo e mais imediato. Na minha época as coisas vinham de fora. Os discos vinham de Inglaterra, a roupa vinha, não sei de onde. Era difícil ter acesso às coisas. E agora há uma Zara de Lisboa a Shanghai. Portanto, o mundo tornou-se mais homogéneo”, refere.

Mas há sempre um mas, diz Valério Romão. “Perdemos aquilo que era singular, tradicional ou exótico. E o turismo, sobretudo este tipo de turismo, não é mais do que uma tentativa de encontrar ou de descobrir ainda um bocadinho desse típico, tradicional e exótico, que cada vez mais reduzido”.

E para que serve a poesia? A eterna pergunta é colocada pelo poeta. Valério Romão explica que a poesia é “uma forma privilegiada, porque é a que vai de encontro àquilo que mais nos é próximo em termos de arte, que é a palavra”.

Contudo, no olhar crítico de Valério Romão, a poesia está hoje “capturada”. “Acho que neste momento está muito voltada para o seu aspeto ‘instagramável’ e imediato e está-se a deixar capturar pelos dispositivos de captura de atenção de contemporâneos”.

Ele que assume que também usa as redes sociais para partilhar alguns dos poemas que nunca editou em livro explica que “o próprio formato da poesia vai ficando cada vez mais curto”.

“Agora tem que caber num quadrado, porque é assim que o Instagram quer. Mas nem tudo é poesia. 80% daquilo que se faz ou 90% daquilo que se faz é absolutamente imprestável”.

Enquanto o leitor tem este livro poema para ler, o autor já está a trabalhar na próxima obra. “Este ano conto lançar um romance, sobre o qual estou a trabalhar agora. Vamos ver quando”, indica.

Comentários
Tem 1500 caracteres disponíveis
Todos os campos são de preenchimento obrigatório.

Termos e Condições Todos os comentários são mediados, pelo que a sua publicação pode demorar algum tempo. Os comentários enviados devem cumprir os critérios de publicação estabelecidos pela direcção de Informação da Renascença: não violar os princípios fundamentais dos Direitos do Homem; não ofender o bom nome de terceiros; não conter acusações sobre a vida privada de terceiros; não conter linguagem imprópria. Os comentários que desrespeitarem estes pontos não serão publicados.

  • Luís Palma Gomes
    17 jan, 2025 Amadora 22:12
    Li e aconselho vivamente a leitura deste grande poema. Se nos anos 70_80 tivemos o FMI do Zé Mário Branco, temos agora este poema de Valério Romão. Ambas as obras de arte inscrevem um misto de crítica e documento sobre um momento histórico. Uma visão subjetiva, mas sublime de termos existido num determinado momento num determinado local.

Destaques V+