21 fev, 2025 - 00:48 • Maria João Costa
O tom foi de pessimismo na mesa partilhada por editores e tradutores. A Inteligência Artificial (IA) é mais do que uma ameaça à profissão de tradutor. No debate promovido no âmbito do Festival Correntes d’Escritas, a questão levantada foi a forma como a tradução feita por uma máquina pode “alisar” a voz autoral.
Na mesa moderada por Michael Kegler, que traduz para alemão a literatura portuguesa, debateu-se se a Inteligência Artificial e a tradução são “aliados ou inimigos”.
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Na mesa oval na Fundação Dr. Luís Rainha sentaram-se a editora Clara Capitão e os tradutores Sara Veiga e Guilherme Pires. Sara Veiga, que pertence ao Coletivo de Tradutores Literários, começou por se mostrar “extremamente pessimista”.
“Tenho a certeza de que a Inteligência Artificial já está a tomar o lugar de nós, profissionais. A literatura nunca será traduzida da mesma forma”, apontou. “Resta-me acreditar que sou eu que não tenho imaginação suficiente para ver que há aqui um ângulo morto que não estou a ver. Tenho colegas que já receberam traduções feitas e é fácil de verificar que não foi feito por uma pessoa”, sublinhou.
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No mesmo tom, o tradutor e revisor Guilherme Pires alertou: “a máquina só identifica símbolos”. A Inteligência Artificial, segundo este editor da Caixa Alta, tem capacidade “inferior” no que toca a “tradução de textos literários, porque não tem a voz autoral”.
“É essa a escrita que faz progredir a Humanidade, e a máquina não domina” essas nuances da voz literária, advertiu o tradutor. Na sua opinião, o uso da Inteligência Artificial “alisa a linguagem” e é no seu entender, “a morte da literatura”.
Guilherme Pires, que falou também da questão das traduções técnicas que têm uma “aparência de qualidade”, mas onde o olho clínico do tradutor consegue “perceber que há erros”, referiu-se ainda a outro fenómeno que está a atacar a profissão de tradutor.
Há “plataformas que estão a contratar ‘pós-editores’” explicou. Ou seja, os tradutores são contratados para rever textos que foram traduzidos por uma máquina. “É mais complicado rever um texto traduzido pela máquina, do que um texto mal traduzido, porque é traduzir com base no lodo”, advertiu.
“Na indústria da edição e legendagem há testes a serem feitos, em que a máquina faz a tradução e depois é contratado um ‘pós-editor’. Esse tradutor recebe metade do valor”, afirmou Guilherme Pires, que alertou ainda para o quanto a Inteligência Artificial pode ser “permeável ao pensamento politico”.
Mais otimista mostrou-se Clara Capitão. A diretora editorial do Grupo Penguin Random House, em Portugal, considerou que estamos perante um “terreno armadilhado e ainda muito nebuloso”.
“Há sempre riscos, ameaças e oportunidades. A forma como vai evoluir vai depender da evolução tecnológica”, sublinhou indicando que em Portugal, o seu grupo editorial não está a usar a Inteligência Artificial.
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No entanto, lembrou o que o CEO do grupo nos Estados Unidos diz: “este ano serão publicados três a quatro milhões de livros gerados por Inteligência Artificial”. O número que assusta leva Clara Capitão a dizer que tudo “vai depender do envolvimento dos autores”.
“Nos EUA os autores têm sido muito críticos, porque entendem que é uma interferência na criação. Já nos aconteceu surgirem capas geradas com Inteligência Artificial onde isso não vem mencionado, e, na Penguin, isso não pode acontecer. Tem de haver ética no uso dessas ferramentas”, destacou.
À discussão, Guilherme Pires acrescentou outra preocupação. “Os novos leitores são menos exigentes”, considerou o editor, que teme assim a proliferação de más traduções.
“Sou muito pessimista. Quando a máquina conseguir traduzir competentemente, a nossa profissão acabou. Sou frontalmente contra isto, mas é inevitável. Será muito mais rentável e mais rápido”, afirmou.
Além da ameaça à criação literária, o uso de Inteligência Artificial é também atentatória contra o trabalho do tradutor. A questão laboral foi levantada no debate por Guilherme Pires.
“É relevante o número de tradutores que deixaram a profissão, muitos deles por ‘burnout’”, referiu o tradutor.
“Há 25 anos que não são atualizados os honorários dos tradutores e agora há editores que querem pagar metade”, alertou Guilherme Pires, para quem os tradutores deveriam unir-se cada vez mais em defesa dos seus direitos laborais.
Já tentaram ter um sindicato, indicou Sara Veiga, mas tal não resultou. “Somos o D. Quixote”, comparou Guilherme Pires, que sublinhou o facto dos “tradutores trabalharem de forma isolada”.
“Uma solução é os autores exigirem contratualmente que os seus textos não sejam traduzidos pela máquina”, lembrou Guilherme Pires, que avisou que “em Portugal há tradutores que prescindem dos direitos autorais para a editora”.
Clara Capitão, que pertence à APEL – a Associação Portuguesa de Editores e Livreiros, apontou: “sem um associativismo organizado é difícil discutir novos honorários para os tradutores. Mas acho que os tradutores têm de ter coragem de reivindicar melhores condições”, rematou.
“Só com a educação se pode alterar o panorama”, indicou Guilherme Pires, que já antes tinha lembrado que “um tradutor traduz com base no passado, no seu conhecimento pessoal, na sua experiência e tenta replicar a voz do autor. A máquina escreve com base no passado, com um manancial de informação roubada a alguém. Além de não reproduzir a voz do autor, não constrói para o futuro. É a morte para a literatura”, afirmou.