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"Quando tu olhas para o Camilo, tu vês Portugal inteiro da cabeça aos pés": os 200 anos de Camilo Castelo Branco

17 mar, 2025 - 16:29 • Redação

A Renascença esteve à conversa com a professora Maria de Lurdes Sampaio, especialista em literatura da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e com Henrique Raposo, escritor e comentador político, sobre a obra de Camilo Castelo Branco.

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Assinalou-se, no domingo, os 200 anos do nascimento de Camilo Castelo Branco, escritor português do século XIX, inserido na corrente literária do romantismo

"Eu acho que o Camilo é o grande romancista português", é assim que Henrique Raposo descreve o autor.

A Renascença esteve à conversa com a professora Maria de Lurdes Sampaio, especialista em literatura da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, e com Henrique Raposo, escritor e comentador político, com prefácios escritos na reedição da obra de Camilo Castelo Branco. Procuramos entender o que faz a obra de Camilo Castelo Branco uma referência na literatura e cultura portuguesas.

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Começamos pela linguagem, porque é um dos aspetos que torna a obra de Camilo uma obra literária. "É quase um lugar-comum a riqueza lexical da obra de Camilo e o modo como ele domina idioletos, socioletos. Acho que essa dimensão é incontornável. Através da língua, ele capta leitores, até porque escreveu muito para os jornais. Camilo é extraordinário pelo trabalho que tem com a linguagem, o modo como ele trabalha a língua portuguesa", destaca a professora Maria de Lurdes Sampaio.

"Ele é, entre outras coisas, um contador de histórias, isso é a dimensão ficcional das suas obras, em alguns aspetos marcada pelo tempo, mas noutros transcende em muito o seu tempo", explica a especialista.

Maria de Lurdes Sampaio considera que "Camilo não é facilmente catalogável", no sentido em que está associado ao movimento literário do romantismo e "é um romântico pelos temas, pelo modo como trata sobretudo o amor e as questões do coração, como coloca as emoções e os sentimentos acima de convenções sociais e acima de leis obsoletas, e o romantismo, entre outras coisas, caracteriza-se por colocar a subjetividade, o sujeito, a sensibilidade no centro. A sensibilidade em detrimento da razão".

Porém, Camilo extravasa, "há um experimentalismo na composição romanesca que nos faz pensar na ficção pós-modernista do século XX. Ele tem uma dimensão autorreflexiva, metaficcional, que não convoca necessariamente o sentimento, a emoção, pelo contrário, convoca a escrita, ou seja, debruça-se sobre a escrita".

A professora reforça ainda a importância do riso em Camilo, "há uma aliança entre o cómico e o trágico, e o riso desarma-nos. O riso não está muito associado ao romantismo. O riso está muito associado a uma cultura popular que ele leva para os romances. Ele cruza a solenidade de certos discursos, com o trivial, com o popular".

Já sobre uma das obras mais conhecidas de Camilo Castelo Branco, Amor de Perdição, Maria de Lurdes Sampaio considera "que há uma certa falácia no entendimento da obra de Camilo a partir do Amor de Perdição".

A obra de Camilo "não é só o tema do amor, até porque o tema do amor muitas vezes está muito associado, até no próprio amor de perdição, à violência. À violência, aos conflitos entre famílias, ao tema da vingança e que é um tema de hoje. Vingança e conflitos por pequenas coisas, pela posse da terra, pela questão do amor, mas não é apenas o coração que está no centro. Também é muito importante em Camilo o tema da orfandade e o modo como ele retrata mulheres que são já mulheres insubmissas".

Àqueles que tentam comparar ou polarizar Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós, Maria de Lurdes Sampaio considera "um absurdo", "a personagem traz consigo um passado, dos seus pais, dos seus avós, dos seus antecessores, e esse passado muitas vezes volta, ou seja, o ser humano não existe num vácuo e é importante ter em conta o passado, ter em conta memórias. Nós temos essa dimensão da complexidade do ser humano, independentemente, às vezes, até do meio onde se cresce, onde o ser humano nasce. Ele retrata uma personagem, como tendo camadas".

Henrique Raposo refere que Camilo Castelo Branco "dá uma visão de Portugal e dos portugueses muito mais abrangente do que aquela que sai dos romances do Eça".

"As personagens do Camilo são muito mais apaixonantes, precisamente porque vêm de um país, de um cenário, onde há mais violência. A primeira metade do século XIX português foi um absoluto caos de guerras, invasões, depois guerras civis, de guerrilhas que se seguiram, de banditismo. Esse mundo, são 50 anos de caos, em que Portugal no fundo foi uma espécie de Síria. Aquilo que a Síria é hoje em dia, Portugal foi isso na primeira metade do século XIX", acrescenta.

A professora Maria de Lurdes Sampaio acrescenta ainda: "Camilo não está empenhado em, sobretudo, descrever a sociedade ou narrar algumas histórias com fins profiláticos ou em função de uma doutrina qualquer. Ele retrata alguns aspetos da sociedade, naquilo que a sociedade tem de obsoleto ou de arcaico. Camilo não é determinista, distingue-se de Eça de Queiroz, porque não segue qualquer cartilha. A liberdade dele é total."

"Em Camilo nós temos a continuidade de uma sociedade monárquica, a falta de liberdade total das mulheres, as mulheres enclausuradas em conventos, por exemplo, isso já não acontece no tempo do Eça de Queiroz. O modo como Camilo faz a caricatura de uma nova fidalguia que adquire os seus títulos através de fortunas, através de dinheiro, os vícios da burguesia, e depois há ecos de oposição entre miguelistas e liberais, há uma liberdade total, ele critica constantemente essas escolas, os princípios".

Para Henrique Raposo, Camilo Castelo Branco "vai a mais sítios, naquele caos criativo dele. Ele foi a todo lado, quer no tempo, estica mais a sua cronologia histórica, digamos assim, quer depois também nos retratos que faz de todos os tipos sociais que possas imaginar. Ou seja, quando tu olhas para o Camilo, tu vês Portugal inteiro da cabeça aos pés. Um dos papéis do romancista, ou do artista se quiser, é não fazer prisioneiros, é não poupar ninguém, é pôr um espelho à frente da sociedade ou dos diversos grupos da sociedade, e mostrar aquilo que nós podemos achar que é feio, e de facto é. Ele faz sempre um retrato impiedoso, tal como o Eça, mas eu acho é que ele vai a mais sítios".

Já a professora de literatura reforça ainda o conhecimento erudito do autor "Camilo leu, ou terá lido, quer da literatura greco-latina, quer da literatura francesa, inglesa, alemã, etc. Ele leu imenso, e também foi tradutor, e um tradutor muito livre, o que lhe permitiu um conhecimento muito profundo da língua portuguesa, mas também um contacto com escritores e modos de escrita, que o podem ter marcado. Estou a pensar apenas num, que é Laurence Sterne, eu diria que Camilo é o nosso Laurence Sterne, escritor irlandês, autor do Tristam Shandy, no século XVIII. A 'metaficcionalidade', as tais experimentações linguísticas, o experimentalismo na composição romanesca, que é de facto espantosa, pode advir da possível leitura do autor irlandês".

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