27 mar, 2025 - 12:13 • Redação
A Livraria Lello vai ter uma nova rubrica, que inaugura esta quinta-feira, e visa conversar com escritores sobre “as camadas invisíveis que compõem a identidade dos autores, as experiências, as inquietações e as memórias que o moldam. O nome de um escritor é muito mais do que a assinatura".
A escritora Teolinda Gersão é a primeira convidada e traz o seu mais recente livro “Autobiografia Não Escrita de Martha Freud”, uma obra que se baseia nas cartas que Martha trocou com o marido, o conhecido Sigmund Freud, durante os quatro anos de noivado, entre 1882 e 1886.
Estas cartas foram publicadas mais de cem anos depois de serem escritas e têm a sua primeira tradução, feita por Teolinda, neste livro.
“Até agora, nunca tinham sido traduzidas as cartas para nenhuma língua, não estão publicadas em nenhuma outra língua, porque há uma opacidade muito grande dos freudianos ortodoxos que não têm interesse em que se conheça a verdadeira figura de Freud e de Martha", explica a autora.
Teolinda estará à conversa com o médico psiquiatra Júlio Machado Vaz, "que vai explorar aqui um bocadinho como é que a autora nos convida a repensar a história, a literatura e a desconstruir estereótipos".
"Vamos refletir sobre o papel da mulher na literatura e a forma como as narrativas podem também ser aqui uma maneira de redescobrir vozes que foram silenciadas. Freud sempre teve voz e Martha sempre foi silenciada. Há uma preocupação com a questão da mulher e da sua condição sociocultural que vamos explorar partindo da obra”, explica Francisca Pedro Pinto, diretora de marca da livraria.
Esta nova iniciativa nasce de um verso de Shakespeare - "What’s in a name? That which we call a rose by any other name would smell as sweet" (O que é que um nome tem? Aquilo a que chamamos rosa, por qualquer outro nome, teria um cheiro tão doce).
Francisca Pedro Pinto explica esta origem, “sentimos que nos faltava um lado mais humano (à programação), aqui inspirado também um bocadinho por Shakespeare, onde Julieta questiona o que há num nome, que se chamamos uma rosa sobre outra designação, se teria igual perfume. É exatamente este o nosso ponto de partida, explorar o que há num nome”.
Já a escritora revela como é curioso ser convidada com este livro para o apresentar dentro da rubrica “Em Nome Próprio”, porque "as cartas mostram as suas personalidades (do casal), sobretudo de Martha, que até aqui não teve voz. Também é Martha que em nome próprio vai falar no meu livro".
O que atraiu Teolinda Gersão a escrever sobre Martha Freud foi a personalidade que demonstrou nas suas cartas, "uma mulher muitíssimo inteligente, muito culta, uma grande leitora de literatura, uma boa escritora que, inclusive, fazia versos e adorava literatura, ela fala de si própria, da maneira como interpreta a relação entre os dois e ela tem voz pela primeira vez. Eu quis dar-lhe essa voz"
"Ela foi a primeira psicanalista de Freud. Ele contava-lhe as suas angústias, os seus medos, as suas inquietações. Ele contava-lhe tudo e ela ouvia-o sem o criticar e sem o agredir e com uma enorme capacidade de empatia. Ela interpretava com imensa capacidade os seus próprios sonhos. Ela sonhava muito e sonhava com ele e em sonhos muito reveladores. Ela tinha a capacidade de compreender o outro e de se colocar no lugar do outro, de empatia, que Freud nunca teve na vida".
"Freud dizia que nunca tinha sonhado com ela, o que é estranho, qual apaixonado que não sonha com a sua amada? Não valorizava os próprios sonhos durante muitos anos e ela sim! Ela interpretava-os e ele não. E, claro, mais tarde ele achou que o sonho era a estrada real para o inconsciente e escreveu a 'Interpretação do Sonhos'".
"Fliess foi depois o seu mentor da autoanálise e foi por quem Freud substituiu Martha, primeiro porque era um homem e ele achava que na sua vida nunca uma mulher poderia ter o peso de um amigo especial a quem ele confiava tudo, esse lugar nunca seria ocupado por uma mulher. Com Fliess ele realiza uma autoanálise que sozinho não conseguiria”, explica a autora, especialista em literatura e estudos germânicos.
O livro é um romance "digamos, diferente". A escritora reflete que "talvez seja um novo tipo de romance que não deixa de ser ficção, ter uma parte de ficção, mas que se baseia fielmente nos factos”.
“É inevitável que haja uma parte que é imaginada. Eu suponho como seria uma realidade, de quando ela, na idade madura, depois de ter vivido mais de 50 anos com o marido e de ter tido seis filhos, teria pensado qual foi o seu papel no seio desta família e na vida deste homem, com uma personalidade muito complexa e muito contraditória, que não pode negar que amou mas que talvez nunca tenha chegado a compreender, se não ao longo dos anos".
Francisca Pedro Pinto acrescenta, “esta obra é um romance documental. Não se trata aqui de ficção pura. É uma narrativa que é rigorosa, exerçam-se evidencias e esta tentativa ousada de Teolinda Gersão, de escrever uma autobiografia, até que ponto é que também não está a revelar algo de si própria. Ao dar voz à história de outra pessoa, acabamos por encontrar inevitavelmente algo de nós próprios”.
A rubrica conta como convidados escritores portugueses e internacionais que, nas suas conversas, vão criar "um espaço de encontro da literatura com a vida e o pensamento". “Partimos das obras publicadas para também estudar um bocadinho sobre o autor e como é que a própria escrita destas obras o moldaram, porque, no fundo, uma obra impacta o autor e depois, inevitavelmente, transforma-nos a nós também”, explica Francisca Pedro Pinto.
Esta iniciativa vem de uma vontade da livraria de incentivar à leitura, “temos a missão muito clara que é pôr o mundo inteiro a ler. Isso trata por tornar o livro um objeto de desejo, mas também por demonstrar como um livro é uma verdadeira arma, é a arma mais poderosa que nós temos. Esta rubrica contribui para demonstrar o poder dos livros em moldar as pessoas, em moldar os próprios autores, em transformar a sua vida e como transformam a nossa própria vida. Somos sempre diferentes depois de lermos uma obra como esta.”
O encontro está marcado para as 21h00 na Livraria Lello. "Em Nome próprio" será trimestral e todas as outras conversas serão gravadas e disponibilizadas em formato podcast nas plataformas online.