24 fev, 2025 - 15:20 • Alexandre Abrantes Neves , Beatriz Pereira , Beatriz Martel Garcia (sonorização) , Ricardo Fortunato (apoio vídeo)
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Anna até pode voltar, mas só para férias. Tatyana tem saudades do pai, mas não deixa por nada as colegas do trabalho de cá. Petrusya quer ver a filha que lá deixou, mas tem de “ajudar os netinhos". Ilya tem saudades do cheiro da terra que o viu nascer, mas tem medo de ficar “sem futuro”.
O que faz quatro ucranianos recusarem um regresso definitivo à Ucrânia, mesmo se a guerra acabasse amanhã? Que peso têm os traumas de uma saída atribulada e apressada? Ou como pode o acolhimento de um povo desconhecido dividir a palavra “casa” por dois países? A Renascença juntou-os numa tarde de fevereiro, três anos depois do início da guerra, para partilharem as suas histórias de fuga e recomeço.
Para Ilya, de 14 anos, não há respostas nem certas nem rápidas. As razões que o fazem querer ficar em Portugal só são reveladas à medida que vai desfiando memórias. Do início da guerra, Ilya recorda-se da “chatice” que sentiu no dia 24 de fevereiro de 2022 – tinha estado doente nos últimos dias e, quando “finalmente” podia sair à rua, acabou proibido pela invasão das tropas do Kremlin.
Nas semanas seguintes, saltitou de um lado para o outro, de bunker em bunker, dentro e fora, ao ritmo das sirenes. O cansaço e o medo não o fizeram cair nem na revolta nem no choro – em vez disso, arrastaram-no para uma apatia profunda.
“Não sei, estava a dormir. Cheguei lá à noite sempre. Não queria saber de nada, só dormir”.
Foi também “sem querer falar com ninguém” que deixou Brovary, perto de Kiev, e rumou a Portugal, a bordo de uma carrinha da Junta de Freguesia de Benfica. Para trás, deixou uma Ucrânia no início das ruínas e que ainda hoje sente dificuldade em descrever. Mas não faz mal: Petrusya, de 68 anos, veste a pele de avó, contraria a voz trémula e prontifica-se a dar-lhe uma ajuda.
“A nossa terra estava muito jeitosa, muito gira, muito verde. E agora, quando vejo na televisão, eu fico muito triste. Está tudo desconstruído – os museus, tudo”, descreve, para logo a seguir sintetizar: “Dói no coração. O que se passa na Ucrânia... Eu não quero que ninguém no mundo sinta aquilo”.
Os olhos azuis semi-enxaguados de Anna refletem a comoção que invadiu a sala. Da Ucrânia, lembra-se das últimas semanas passadas entre as duas vivendas da família em Lypovets e Nemirov, no centro do país. Iam alternando entre elas ao som das bombas.
“Não sabes onde vai cair, quando vai cair. Consegues ouvir, sentes o cheiro, vês terra a saltar, mas não percebes quando vai acontecer”, recorda.
Deixamos em pausa este momento a quatro para recuar até março de 2022, quando Anna chegou em Portugal, acompanhada do filho bebé. Tinha 17 anos.
“Com o meu filho, que tinha um ano, não tive problemas nenhuns. A Santa Casa [da Misericórdia] ajudou com a escola. Passou um mês, fizemos os documentos e ele foi para a escola”.
"Quando cheguei, havia muito bullying. Muitos ucranianos diziam: ‘tu és russa, o que é que estás a fazer aqui? Não precisas de ajuda’"
Hoje, vive num quarto com o filho, serve às mesas numa pastelaria para pagar as despesas e conta com a ajuda da mãe (entretanto também chegada a Portugal) para tratar do menino. Conseguiu estabilizar a vida, mas não esquece a altura em que foi obrigada a tornar-se adulta sozinha e em contra-corrente.
Primeiro, teve de lidar com a dificuldade em aprender português, a seguir a demora em receber os documentos da Segurança Social e depois o entrave de arranjar emprego sem ter 18 anos. Valeu-lhe o apoio da Junta de Freguesia de Benfica, que ajudou no “mais importante”, a procura de casa. O longo cardápio de dificuldades era esperado, mas, ainda assim, Anna saiu surpreendida.
“Havia muito bullying. Quando cheguei, falava russo, mas tentava ao máximo falar ucraniano. Era uma palavra em russo, uma palavra em ucraniano. Muitas pessoas diziam: ‘tu és russa, o que é que estás a fazer aqui? Não precisas de ajuda’”, recorda, em conversa com a Renascença, horas antes de se juntar aos colegas de painel.
Desse grupo, só conhecia previamente Ilya – “se ele não tivesse arranjado namorada, até era o meu futuro marido”, lança-lhe em tom de provocação, numa das pausas entre câmaras.
A cumplicidade entre os dois vai surgindo aqui e ali durante a conversa, em parte porque partilham boas experiências de integração em Portugal, que também explicam a pouca vontade para voltar à Ucrânia.
“Tivemos sorte com a família de integração. Gosto de todos. Graças a eles, estou numa escola boa. (...) Tenho amigos portugueses, já sei a língua, está tudo bom. (...) Tudo o que era mau, já esqueci, saiu da minha cabeça”, contava o rapaz de 14 anos, entre sorrisos, quando recebeu a Renascença dias antes, no campo de futebol onde costuma treinar.
Não sabemos, no entanto, se esta alegria é motivada pelas boas memórias recentes ou por estar sentado em frente a uma baliza.
Começou a jogar futebol logo nas primeiras semanas em Portugal. Rapidamente arranjou um espaço em Alfragide onde treina todos os sábados, gosta de jogar à defesa e não perde uma oportunidade para erguer o emblema do Sporting. É adepto ferrenho e com orgulho – e isso já lhe valeu um presente especial no último Natal.
“O Gyökeres mandou-me um vídeo, onde dizia ‘bom Natal, obrigado por apoiares o Sporting e espero ver-te um dia no estádio’. Fiquei muito feliz. É o melhor jogador em Portugal”. E os olhos brilham uma vez mais.
Deste grupo de ucranianos, há uma voz que ainda não ouvimos. Tatyana Korneeva, 42 anos, professora universitária e investigadora em economia. Chegou a Portugal com a mãe e pressionada pelo pai. É advogado e está impedido de sair do país, devido à assistência que presta a militares e voluntários em assuntos jurídicos. “Tenho muitas saudades”, confessa Tatyana.
De há três anos para cá, os dias são feitos de preocupação (“o meu pai também não tem boa saúde”) e de surpresa. Passaram 1096 dias e ainda lhe parece mentira ver o próprio país bombardeado na televisão: “Acho que as pessoas lá também se sentem assim”. Este é apenas um dos muitos momentos em que Petrusya anui com a cabeça. A voz de Tatyana fá-la lembrar da própria história.
"Agora, neste momento, não tenho medo de nada”. Oiça aqui a reportagem da Renascença.
Petrusya é a única desta mesa-redonda que não chegou a Portugal como refugiada. Mora há mais de 20 anos em Lisboa. Chegou pela mão de uma sobrinha e vive agora com os netos e uma das duas filhas. A outra ficou na Ucrânia.
“Ligo todos os dias. Quando não falo com ela, sabe todo o mundo. Fico preocupada, o dia todo a chorar”, conta aos colegas de painel, num misto de embaraço e nervosismo que reflete no riso tímido e nos jeitos que vai dando ao lenço.
Anna também sabe o que é esta preocupação, apesar de tentar mostrar que é “sempre ser muito relaxada”. Todos os dias envia fotografias ao seu pai – para lhe mostrar o neto, o trabalho, os sítios que visita, os amigos que conhece. As respostas são poucas, sucintas e, às vezes, demasiado espaçadas.
“Responde-me sempre com um emoji. Quando ele não me responde uma ou duas semanas, ou quando não consigo falar com ele, já estou muito preocupada… Sei lá, fico logo a pensar ‘será que ele já não está vivo?’”, desabafa.
Apesar de o desejarem, nenhum deles acredita que a guerra vai acabar rapidamente: “Pelo menos, mais quatro anos”, diz o boletim de previsões de Ilya, o mais concreto do grupo.
Tatyana é mais contida e prefere não se comprometer com um prazo. Não se coíbe, no entanto, de tentar explicar por que razão a paz ainda não chegou à Ucrânia.
“Só com ajuda da União Europeia e dos Estados Unidos. A Ucrânia, sozinha, não consegue resolver a situação”, afirma, num tom que Petrusya aproveita para também apontar o dedo aos parceiros da Ucrânia. “Esta não é só a nossa guerra. É de toda a Europa. Estamos a aguentar esta guerra”.
"Tenho amigos portugueses, já sei a língua. Está tudo bom. Tudo o que era mau, já esqueci."
Os últimos dias têm sido de muita atenção às notícias e de tentar perceber o que se pode ou não esperar das primeiras pistas para negociar a paz. Entre este núcleo duro, Donald Trump é um nome incontornável, é certo, mas muito pouco popular.
“Sem palavrões”, pede Ilya a Petrusya, quando lhe perguntamos o que diria ao presidente dos Estados Unidos. Petrusya não se quer comprometer com uma resposta, mas Anna assume a dianteira – não gosta nem de Trump nem das promessas que tem ouvido.
“Eu não acredito que vá ajudar assim muito. Não tenho confiança neles. Eles falam para as pessoas uma coisa e entre eles – os políticos, os presidentes – acontece outra coisa. Eles nunca vão dizer a verdade”.
Renascença em Kiev
Três anos depois, o futuro e presente da guerra pa(...)
A palavra “eles” vai-se repetindo nas frases seguintes, ditas por qualquer um dos quatro, mas demora até ficar esclarecido a quem se refere o pronome. As dúvidas são desfeitas quando perguntamos a Petrusya o que faria se estivesse cara a cara com Vladimir Putin.
“Cortava-lhe a cabeça logo!”, responde, para deixar a sala num uníssono de risos – que se transforma logo a seguir num aceno sincronizado de cabeças. “Nós também temos direito a viver. Não precisamos de Putin. Ele tem de deixar a Crimeia, Donbass, Donetsk. Isto é nosso”.
O rol de culpas a atribuir a Putin parece ser longo. O tema acaba interrompido por mais um convidado extra que vem ao barulho – o primeiro a quem se referem como “nosso”.
“O nosso Presidente fica sempre forte. Não tem medo de continuar. Tenho muito respeito e agradeço”.
Estas palavras de Tatyana abrem uma carpete de elogios a Volodymir Zelensky. Anna ficaria tão incrédula se encontrasse o presidente ucraniano que “teria de preparar todas as palavras e levar tudo escrito num papel”. Petrusya depositava nele os desejos de “saúde, felicidade e paz” que tem para a Ucrânia. Ilya agradecia-lhe pela “coragem e por não ter fugido” – uma postura que nos faz recordar o Ilya do início da conversa.
“Tive muito medo. Passava um gato e dizia ‘mãe ajuda’. Na rua, quando alguém atirava alguma coisa, ficava a chorar. Agora, neste momento, não tenho medo de nada”.
Há exemplos que marcam, mesmo a milhares de quilómetros de distância.